segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Pais que terceirizam os filhos


Trabalho demais, o trânsito caótico e até mesmo desinteresse têm roubado momentos preciosos de convivência entre pais e filhos. Pais e mães têm se afastado do cuidado, deixando que todo trabalho seja feito por terceiros. É cada vez mais comum buscar escolas de período integral, babás assumindo praticamente todas as responsabilidades pelos cuidados com um filho que não é delas, desde a saída da maternidade. Há pesquisas inglesas em que os cientistas acompanham as crianças durante 20, 30 anos. Esses estudos mostram que a ausência de afeto nos primeiros anos de vida se traduz em dificuldades de relacionamento social, problemas de aprendizado, hiperatividade e agressividade.
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Os pais devem delegar a babás funções mais operacionais e reservar mais tempo de convívio com a criança

Durante quatro anos e meio, a babá Luiza*, 30 anos, trabalhou na casa de um empresário paulista. Tinha sob sua responsabilidade um bebê de um ano e seis meses e outro de apenas seis meses. Dormia no emprego e, no começo, tirava folga a cada 15 dias. Até que percebeu que suas ausências não faziam bem às crianças.

“Elas eram muito apegadas a mim. Quando eu saía, não tomavam nem banho. O pai era atencioso, mas não tinha tempo de ficar com elas. Já a mãe não tinha mesmo vontade de ficar com os filhos. Uma vez, ela estava lendo uma revista e não viu quando o mais novo comeu uma lâmpada de pisca-pisca da árvore de Natal. Outra vez, deixou os dois sozinhos na sala e, quando se deu conta, o mais velho estava pendurado na sacada”, diz. Desde esse dia, a babá optou por diminuir suas folgas.

A situação vivida por Luiza é frequente no cotidiano das profissionais que tomam conta de crianças. É cada vez mais comum encontrar babás –algumas altamente qualificadas, com domínio do inglês e salários entre R$ 2.000 e R$ 8.000– assumindo praticamente todas as responsabilidades pelos cuidados com um filho que não é delas, desde a saída da maternidade.

O pediatra José Martins Filho, professor convidado do programa de pós-graduação em saúde da criança e do adolescente da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), chama o fenômeno de “terceirização das crianças”, tema de um de seus livros, lançado pela Editora Papirus.

Martins Filho destaca que o fenômeno não se restringe às classes mais altas. Trabalho demais e o trânsito caótico têm roubado momentos preciosos de convivência entre pais e filhos, em todos os setores da sociedade.

O pediatra é contundente. Para ele, parte da violência sofrida pela sociedade atual é devida à falta de construção de vínculos afetivos entre os familiares próximos.

“Há pesquisas inglesas em que os cientistas acompanham as crianças durante 20, 30 anos. Esses estudos mostram que a ausência de afeto nos primeiros anos de vida se traduz em dificuldades de relacionamento social, problemas de aprendizado, hiperatividade e agressividade. Por isso é que, em alguns países, a licença-maternidade é de dois anos e não apenas de quatro meses”, afirma.

Para a psicóloga Maria Tereza Maldonado, especialista pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) do Rio de Janeiro e membro da Associação Brasileira de Terapia Familiar, é no cuidado diário –trocar fralda, amamentar, acalentar, brincar etc.– que se constroem os vínculos de afeto.

“Pais e mães têm se afastado do cuidado, deixando que todo trabalho seja feito por terceiros. Mas essas tarefas significam construção de vínculo. Quando elas são delegadas a outra pessoa, esvazia-se essa construção.”

A psicóloga Ceres Alves de Araújo, professora da PUC de São Paulo, tem a mesma opinião. “Já conheci famílias que tinham babás em três turnos, de forma que a criança nunca ficava sozinha com os pais”, diz. Ela observa que muitos adultos, simplesmente, não têm paciência para cuidar de suas crianças, mesmo quando estão em casa.

“Sobretudo entre dois e cinco anos, os filhos exigem muito dos pais. Nessa fase, são muito comuns as birras, e os pais precisam impor limites até para proteger a criança de situações perigosas. Só que impor limites não é uma tarefa das mais fáceis ou prazerosas”, afirma.

Márcia*, 19, trabalhou apenas nove meses como babá de uma criança de três anos. Ela desistiu porque grande parte da responsabilidade pelos cuidados e até pela educação da criança foram delegados a ela.

“Eu praticamente era a mãe da criança. E os dois salários mínimos que recebia eram uma remuneração baixa demais para o tamanho da responsabilidade que tinha e para a carga de trabalho enorme, que incluía até viagens com a família. Quase não tinha folgas”, diz.

Rose*, 25, babá de uma menina de seis anos, conta que, da mesma forma que a colega, assume papéis que ela considera serem dos pais.

“Passo mais tempo com a menina do que a própria família dela. Chego às 9h e dou o café. Depois, levo para as aulas de esportes, dou almoço e, do clube mesmo, vamos direto para a escola. Ela só volta da escola às 18h, sou eu quem busca. Dou banho, jantar e depois brinco um pouco com ela. Também sou eu que a ajudo a fazer lição, que levo para as festinhas de aniversário e para brincar com as amiguinhas”, diz Rose. Apesar da atenção constante, ela nota que, às vezes, a garotinha fica carente. “A mãe viaja bastante a trabalho”, explica a babá.

Sinais de alerta

Manhas, birras, irritabilidade. Para a psicóloga Maria Tereza Maldonado, é fácil identificar uma criança que está pedindo mais tempo de convívio com os pais. “Ela gruda neles assim que chegam em casa. Ou, então, exige um monte de coisas e não se satisfaz com nada. Acorda seguidamente à noite, que é quando ela sabe que os pais estão em casa.” Há também crianças que apresentam franca rejeição aos pais ou ainda um forte apego à babá.

A profissional Meire*, 20, viveu a experiência de tomar conta de uma criança que se tornou, de certa forma, dependente dela, tamanho o apego. Meire cuidou de um menino de seis anos, que classifica como dono de um temperamento difícil.

Diagnosticado com depressão, o garoto recebia atendimento psicológico e tomava remédios controlados, que a babá administrava regularmente. Durante um ano, Meire passou todos os dias e as noites com o garoto, inclusive nos finais de semana. Depois desse período, quando decidiu tirar férias, o menino, mesmo sob tratamento, teve rompantes de agressividade.

“Ele não conseguia entender por que uma babá precisava de férias. Estava muito ligado a mim”, conta Meire.

Porém, segundo os especialistas, o envolvimento afetivo das crianças com suas cuidadoras não é necessariamente um problema. Afinal, é importante que, na primeira infância, as crianças tenham a oportunidade de desenvolver vínculos afetivos sólidos com um adulto, seja ele parente ou não.

A psicóloga Ceres Araújo lembra que as famílias sempre contaram com ajuda no cuidado com os filhos. “Avós e tias cuidavam das crianças quando as mães precisavam trabalhar. A novidade dos tempos atuais é ter pessoas estranhas à família exercendo esse papel”, afirma.

Parceria que funciona

Quando há um diálogo franco entre os pais e a babá, o ambiente se torna muito mais saudável para a criança. “Uma questão crucial, a meu ver, é que os pais consigam estabelecer uma relação de confiança com a babá. Se isso ocorre, todo mundo sai ganhando”, diz a psicóloga Sheila Skitnevsky Finger, doutora pela Escola Superior de Psicologia Profissional de Massachusetts, em Boston, nos Estados Unidos, e fundadora do Instituto Mãe Pessoa, especializado na capacitação de educadores e orientação de famílias.

A psicóloga não gosta de usar o termo “terceirização”. Ela diz que a palavra traz, em si, uma carga pejorativa, um julgamento aos pais que precisam contar com a ajuda de outras pessoas para tomarem conta de seus filhos. Para Sheila, é muito saudável que pais e mães tenham trabalho ou outros projetos para desenvolverem além do âmbito doméstico. “O modelo de mãe todo dia em casa não funciona mais em nossos tempos”, afirma.

Um caminho é estabelecer com a babá uma parceria que garanta momentos de privacidade só entre a criança e seus pais. Sempre que possível, aconselha Maria Tereza, os pais devem destinar à empregada o maior número possível de funções operacionais, ou seja, que tenham relação com a criança, mas não necessariamente impliquem contato direto com ela.

E para os pais que chegarem à conclusão de que talvez tenham delegado funções demais a uma terceira pessoa, a orientação é tentar estabelecer mudanças na dinâmica de cuidado, mas nunca de forma abrupta e sempre observando as reações da criança.

“Retomar o vínculo é sempre possível, mas é preciso querer e, acima de tudo, respeitar o tempo da criança”, afirma Sheila. Flexibilizar horários de trabalho nem sempre é uma solução possível, embora desejável.

Mas o importante mesmo é valorizar o tempo livre com a criança. “Quando chegar em casa, desligue TV, celular e Facebook e crie um tempo de convívio com o seu filho, reserve algumas horas na sua agenda só para ele”, diz Maria Tereza.

* Os nomes foram trocados para preservar a privacidade das entrevistadas.

Suzel Tunes e Thaís Macena

Fonte: www.mulher.uol.com.br

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