No dia 9 de novembro, na manhã seguinte à eleição de Donald Trump como presidente dos EUA, durante um retiro no Garrison Institute, em Nova Iorque, pediram que Matthieu Ricard falasse um pouco sobre o momento atual. Sua resposta pode ser útil para muitos, não apenas praticantes budistas. A transcrição é de Diogo Rolo e a tradução para o português de Gustavo Gitti, Marcus Telles e Gabriel M. Falcão.
De uma perspectiva budista, como podemos encarar nossa situação atual?
Uma imagem comumente usada no budismo diz que nós somos como abelhas aprisionadas em um pote de mel. Isso significa que sempre podemos buscar uma resolução imediata para os nossos problemas, remendando as coisas no curto prazo. Mas quando tudo parece sair do controle, nós precisamos nos perguntar: por quê? Por que isso continua surgindo de novo e de novo? Então, se considerarmos a maneira como a nossa realidade se desdobra, veremos que o problema é muito mais profundo do que simples manifestações externas de ganância, indiferença, ódio ou de algum sentimento exacerbado de auto-importância… É claro que nós não devemos aceitar tais coisas, e podemos reconhecê-las pelo que são, porém simplesmente remendá-las e seguir adiante não parece estar nos levando a uma cura duradoura.
Portanto, qual é a raiz original de toda essa confusão? Será que o mundo é um lugar genuinamente malvado? Será que os seres humanos têm uma natureza má? Será que o ódio, a inveja e a auto-importância estão permanentemente cravados em nossas mentes? Ou será que são algo imposto por uma entidade externa?
Bem, a análise budista do mundo diz que existem causas mais profundas que podemos analisar e identificar — e, obviamente, como qualquer fenômeno, causas e condições são naturalmente impermanentes. Quando o Buda ensinou as Quatro Nobres Verdades, a primeira coisa que ele explicou foi o reconhecimento do sofrimento. Ele não estava se referindo apenas ao sofrimento no sentido da dor que ocasionalmente sentimos em nossos corpos, ou ao sofrimento que surge quando vemos um massacre, que é algo bem direto e óbvio. Ele tampouco estava falando meramente do sofrimento da mudança, que nós experimentamos quando as coisas demonstram sua própria impermanência. Seu ensinamento principal era sobre as causas mais profundas do sofrimento: sua mensagem era que, enquanto continuássemos a manifestar uma profunda delusão e confusão interna, isso nos levaria a uma visão distorcida da realidade, da maneira como as coisas realmente são — e, como consequência, muitas manifestações de sofrimento estariam fadadas a surgir, vez após vez.
Nesse contexto, ao falar em ignorância, o Buda não queria dizer falta de informação ou desconhecimento de alguns fatos, e sim algo bem mais profundo: nossa fixação à profunda sensação de ser um eu autônomo e reificado; assim como uma fixação à manifestação do mundo fenomênico como algo sólido, imutável e pré-definido em si mesmo. É a ignorância de não ver que todos os fenômenos surgem de forma interdependente, e que nunca podemos atribuir uma única causa de forma isolada, já que a explicação do mundo se dá através de uma rede complexa de conexões.
Quando falhamos em compreender isso, tal visão distorcida pode nos levar a uma sensação de separação entre “eu e os outros”, depois para “atração e repulsa”, e daí para todo tipo de emoção destrutiva, como ódio, arrogância, apego, ausência de discernimento e assim por diante… Esses são os fatores que eventualmente nos levam em direção ao sofrimento.
No entanto, nós poderíamos dizer: “Ah, mas essa é uma análise muito sombria da realidade e da condição humana!” E se fosse apenas isso, sem nenhuma saída, tal comentário seria verdadeiro. Mas nós precisamos manter em mente que o sofrimento surge de causas e condições, e como nenhum fenômeno do universo é permanente, criar um novo conjunto de causas e condições pode realmente mudar as coisas. Quando assumimos essa visão, de identificar as causas e condições e seus respectivos antídotos como um caminho para seguir em frente, isso nos leva à metáfora que discutimos ontem, de ver os professores espirituais como médicos e nós mesmos como pacientes.
Então, primeiramente o Buda reconheceu o problema do nosso sofrimento (essa foi a sua primeira nobre verdade). Em seguida ele identificou as causas do problema (sua segunda nobre verdade) e, num terceiro momento, ensinou a possibilidade da cessação do sofrimento, que é parte fundamental de seus ensinamentos. Sem ela, o desespero e a impotência tornam-se consequências lógicas do reconhecimento da nossa situação atual.
Certa vez eu ouvi o Dalai Lama dar o exemplo de que se nós estivéssemos em um avião e víssemos alguém perdido no meio do oceano, próximo a uma ilha, porém nadando na direção errada, só seríamos capazes de sentir pena e desespero. Mas se estivéssemos vendo a ilha e pudéssemos sinalizar para a pessoa que, caso ela nadasse na outra direção, encontraria terra e um refúgio seguro, então aquela piedade impotente se transformaria em uma compaixão poderosa, porque iríamos visualizar uma oportunidade de acabar com aquele sofrimento: nós apenas teríamos que dizer para a pessoa em qual direção ela precisaria nadar.
Portanto, a compaixão só faz sentido se existir a possibilidade da cessação do sofrimento, se houver uma estratégia que possamos seguir para dar fim ao sofrimento. Para a nossa sorte, essa foi a quarta nobre verdade que o Buda ensinou: existe um caminho que podemos seguir — e a raiz desse caminho rumo à liberação consiste em cortar das nossas mentes esse engano e essa ignorância básica. Fazendo isso, como uma árvore cuja raiz é cortada e consequentemente vê todas as suas folhas caírem ao chão, da mesma forma, todo ódio, indiferença, ganância e orgulho que nossa mente consegue manifestar são igualmente eliminados quando lidamos com a causa-raiz da nossa confusão.
É por isso que às vezes até conseguimos compreender o quadro geral, mas ainda assim nos sentimos impotentes, desencorajados e querendo ir pra casa. Nos ensinamentos budistas frequentemente se utiliza a imagem de um cervo ferido, que só quer se esconder na floresta até que esteja melhor e possa sair. Mas precisamos entender a necessidade de trabalhar individualmente para se libertar do sofrimento: ninguém pode nos lançar em meio à terra da sabedoria e da liberação, como se estivesse atirando uma pedra em cima do telhado… Da mesma forma que um médico não pode tomar nossos remédios e fazer o tratamento em nosso lugar, o Buda disse: “Esse é o caminho… mas agora cabe a você caminhar”.
Foi nesse contexto que ele também discutiu a ideia de comunidade ou sanga, um lugar onde podemos trabalhar juntos e alcançar de forma mais eficaz os objetivos que estabelecemos para nós mesmos. Na verdade, esse é o nosso exemplo para hoje: estamos juntos porque juntos podemos alcançar mais coisas do que cada um de nós jamais conseguiria individualmente. Nessa linha, faria sentido nos sentirmos impotentes se a possibilidade de alcançar a liberação do sofrimento não existisse. Mas devido ao fato de que há um remédio, de que há uma saída, o que precisamos fazer é materializar esse caminho em nós mesmos e em nossa cultura. Uma tal mudança nunca irá acontecer por si só como uma intervenção de cima para baixo.
Porém, se estivermos nos sentindo desencorajados pelos obstáculos, como alguns talvez estejam se sentido hoje (afinal, ainda que compreendamos de onde vem o sofrimento, as dificuldades temporárias podem consumir nossa energia), o próprio fato de que existem dificuldades pode ser tomado como uma lição para reconhecermos que podemos ficar ainda mais determinados em chegar à causa-raiz do nosso sofrimento. Ademais, podemos lembrar que isso também vai passar… afinal, a impermanência nem sempre é algo ruim! Às vezes nós falamos sobre impermanência no contexto de vida e morte, de envelhecimento, de perder aqueles que nos são caros, mas a impermanência também segue funcionando quando algo de ruim acontece!
Portanto, se queremos mudanças, se queremos criar um novo conjunto de causas e condições, como podemos fazer isso? Bem, certamente não vai ser através de manifestações de extrema raiva ou de alguma força antagônica, porque isso apenas vai alimentar um ciclo vicioso, como se estivéssemos caindo dentro de um fosso pequeno e lotado, onde todos já estão batalhando para permanecer acima do nível da água. A coisa mais poderosa que podemos fazer é continuar a busca da sabedoria e da compaixão, porque essa é a melhor fonte de mudança para nós mesmos e para a sociedade. Às vezes as pessoas acham que a violência é a melhor solução, porque ela pode trazer uma resolução mais rápida. Mas nós sabemos, por experiência, que a violência só gera mais sofrimento. Nesses casos, pode parecer que a sabedoria e a compaixão não são a melhor forma de proceder, mas com certeza são, porque essa é a única forma que vai até a raiz dos nossos problemas.
Claro que isso é uma análise em um nível mais fundamental e nós também deveríamos considerar um nível mais relativo. Mas, mesmo nele é bom lembrar que, alguns séculos atrás, na Europa, as pessoas passavam os domingos em família assistindo a enforcamentos públicos e torturas, mais ou menos como hoje nós vamos assistir a uma partida de futebol ou a um filme. Portanto, embora ainda haja coisas terríveis acontecendo atualmente, como o que está ocorrendo na Síria ou no Sudão do Sul, a verdade é que já percorremos um longo caminho e, apesar da mensagem diária da mídia, progredimos significativamente em coisas como a evolução das democracias ao redor do mundo, uma maior igualdade entre homens e mulheres, ou mesmo os avanços gerais de acesso à educação em vários países.
É claro que ainda há muitas dificuldades no mundo, mas nós nunca deveríamos perder nossa coragem e determinação. E o fato de estarmos todos juntos aqui hoje é um testemunho de que, na verdade, nós podemos sim construir um mundo melhor juntos. Então, sabemos que tudo vai passar, porém cabe a nós determinar o que virá a seguir — e nós não deveríamos pensar que a transformação pessoal é apenas um luxo para o mundo, ainda que às vezes tal conexão possa não estar tão clara para nós. Algum tempo atrás, perguntaram ao Dalai Lama como a meditação poderia ajudar a resolver a Guerra do Iraque. Mas isso é como perguntar o que fazer com o último copo d’água quando uma floresta está em chamas…
Em vez disso, nós deveríamos ser lembrados de que cada guerra no mundo começou na mente, com um pensamento de ganância ou ódio, que cresceu e cresceu, se ampliou mais e mais, e eventualmente inflamou um grupo de pessoas. Mas a raiz de toda violência e sofrimento é um único pensamento em uma mente. Portanto, nós não deveríamos subestimar o poder da mente de conjurar um sofrimento imenso e, ao mesmo tempo, de se libertar deste mesmo sofrimento. Nós não deveríamos pensar que, ao nos engajarmos em uma transformação pessoal profunda, não causaremos nenhum impacto. Então, eu te convido a não perder a coragem no poder de sua própria transformação e na transformação de suas comunidades.
Portanto, se você se sente desencorajado agora, saiba que esse sentimento não vai durar, e que a nossa coragem, a nossa determinação e a nossa alegria em alcançar algo saudável logo retornarão. Podemos confiar que, se tivermos a visão correta e praticarmos algo significativo, não há dúvidas de que a nossa determinação será forte e vai nos inspirar a construirmos juntos um mundo melhor. Então, quando nos sentarmos para meditar daqui a alguns minutos, isso não será um passo sem sentido na busca por uma transformação interna profunda – na verdade, isso é o processo na raiz da liberdade do sofrimento e da delusão e, portanto, da transformação social.
Se é verdade que cada guerra começou com um pensamento de ódio, então toda vez que neutralizarmos um pensamento de muito apego e ganância estaremos ao mesmo tempo neutralizando, na raiz, uma possível reação em cadeia que poderia levar a um sofrimento maior. Da mesma maneira, cada vez que ativarmos um pensamento de compaixão, estaremos começando uma reação em cadeia que pode trazer bondade para o mundo.
Portanto, nós deveríamos entender que a mudança social nunca vai acontecer sem a mudança pessoal: ela só vai ocorrer quando seguirmos nossas trajetórias rumo a nos tornar melhores seres humanos. Esse não é um projeto pequeno: ele se encontra na própria raiz da mudança do mundo. Então, por favor, pense sobre isso como algo que realmente importa.
Matthieu Ricard
Garrison Institute, Nova Iorque, 9 de novembro de 2016
Garrison Institute, Nova Iorque, 9 de novembro de 2016
Matthieu Ricard, cresceu no meio intelectual de Paris e doutorou-se em genética molecular. Aos 38 anos passou a viver nos Himalaias para tornar-se monge budista; é autor do livro “Felicidade – A prática do Bem Estar”, ‘”A arte de meditar” e “A revolução do altruísmo” disponíveis em todas livrarias. Saiba mais sobre ele aqui.
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