"Para milhares de pessoas é a perspectiva da morte inevitável o principal motivo de infelicidade. E essa infelicidade cresce na razão direta que se aproxima, inexoravelmente, o fim da existência terrestre. Aprenderam, em pequeno, que a morte é o fim da vida, e não conseguiram, mais tarde, libertar-se desse erro tradicional. Pelo contrário, o horror à morte foi neles intensificado por certas doutrinas teológicas sobre um estado definitivo 'post-mortem'.
Entretanto, todos os homens que, na jornada da sua evolução ascensional, ultrapassaram essa etapa primitiva sabem que a morte não tem para a existência total do homem nenhuma significação decisiva. Todos os grandes gênios espirituais da humanidade falam da morte como de um 'sono'. 'Nosso amigo Lázaro dorme', diz Jesus; a filha de Jairo 'dorme'. A palavra grega 'koimitérion', de que resultou em latim 'coemiterium', e em português 'cemitério', quer dizer 'dormitório'. Os primeiros discípulos de Jesus, ainda no período duma luminosa intuição espiritual da realidade, chamavam os cemitérios 'dormitórios', porque sabiam que não havia morte definitiva.
A vida continua lá onde parou. Não pode um processo material e meramente negativo, como é a destruição do organismo físico, modificar essencialmente a vida do homem. Não pode a morte negativa fazer o que a vida positiva não faz. A verdadeira mudança depende de algo que o homem faz, e não de algo que o homem sofre, porque nós é que somos os autores do nosso destino.
Quando um ovinho da borboleta 'morre' para seu estado primitivo, não morre a vida interna do ovo, morre apenas o invólucro externo dele, a fim de possibilitar à vida latente e pequenina uma expansão maior e mais bela; quer dizer que a morte do ovinho é, na realidade, uma ressurreição, um nascimento para uma vida maior. Morre a pequena vida do ovinho para que viver possa a vida maior da lagarta. (...)"
"(...) Quando, semanas mais tarde, a lagarta também 'morre' e se imobiliza no misterioso ataúde da crisálida ou do casulo, mais uma vez essa pseudomorte preludia uma nova fase de vida, mais ampla e plena que as duas etapas anteriores. Finalmente, vem a terceira 'morte' desse inseto em evolução ascensional, e o ocaso dessa terceira fase da vida é a alvorada da vida mais deslumbrante que vai despontar - a borboleta.
Em cada nova metamorfose, o inseto morre com a mesma tranquilidade com que nasce e renasce, porque sabe instintivamente que essas vicissitudes de luz e trevas, de movimento e imobilidade, de expansão e contração, são necessárias para atingir a meta final da sua evolução. O inseto não é capaz de crear uma falsa teologia ou filosofia sobre si mesmo, e por isto não teme a morte, prelúdio duma vida nova.
Também o homem 'morre' cada noite, quando se recolhe ao sono - a fim de ressuscitar, no dia seguinte, com vida nova e forças maiores. É uma inconsciência entre duas consciências. Assim como o sono não atinge a vida central de nosso Eu, senão apenas o invólucro periférico, do mesmo modo a morte não afeta a nossa íntima essência, que dá vida aos invólucros externos.
A alma não é atingida pelo processo da morte. Essa hora da grande metamorfose está, geralmente, envolta no véu duma suave semiconsciência crepuscular... Tudo nos parece distante, cada vez mais distante... Tudo vago, longínquo, aéreo... Recuam as paredes do quarto... Perdem-se no espaço os derradeiros sons... Entorpecem as extremidades do corpo... A semiconsciência centraliza-se no coração, no cérebro, últimos redutos da vida material... Por fim, o corpo repousa como um invólucro vazio do inseto deixado pela vida... E, por algum tempo, a alma parece imersa num sono profundo... Desce sobre ela a noite duma paz intensa, misteriosa, benéfica... (...)"
"(...) Quanto tempo durará essa noite de semiconsciência? Ninguém o sabe. Para uns é longa, para outros breve. Depende do modo de vida que alguém levou na terra; depende do conteúdo e da qualidade das nossas experiências atuais. Para uma alma firmemente presa ao corpo físico, à matéria dos sentidos e do mundo, causa essa separação um choque violento, uma espécie de hemorragia interna, de maneira que, por largo tempo, ela não consegue recuperar equilíbrio e suficiente consciência para se orientar e saber o que aconteceu e onde está.
Para outras almas, já devidamente habituadas ao desapego voluntário da matéria, é breve esse estado de inconsciência parcial, porque não houve choque violento; como São Paulo, podiam dizer em plena vida terrestre 'eu morro todos os dias, e é por isto que vivo - mas não sou eu que vivo, o Cristo é que vive em mim'.
Quando, então, a alma volta a recuperar consciência de si, não sabe ainda que se acha fora do corpo material. O longo hábito de sentir e pensar através da rede dos nervos orgânicos mantém a alma, por algum tempo, na ilusão de sentir e pensar ainda através desses mesmos veículos, já inertes. Mesmo quando conatempla o seu corpo imóvel, não se convence desde logo que esse invólucro não seja mais instrumento dela. O homem espiritual, porém, habituado a não se identificar com o seu corpo, durante a vida terrestre, rapidamente se habitua ao novo ambiente e se sente perfeitamente 'em casa'. E logo essa alma, levada por um impulso interno, vai em busca de outros seres que tenham afinidade espiritual com ela, porque vê nesses seres seus irmãos, suas irmãs, sua família espiritual. Cessaram os liames do parentesco material; começam a agir as forças da afinidade espiritual, segundo a eterna lei cósmica 'semelhante atrai semelhante'. E formam-se novos mundos e novas humanidades. (...)"
"(...) Quando, pois, vês morrer um dos teus entes queridos, leitor, não te entristeças, não chores desconsolado, não fales em desastre ou catástrofe, não te cubras de luto. Fica em silêncio por algum tempo, abisma-te em ti mesmo, acompanhando com a alma a metamorfose da tua 'borboleta'. Lava o rosto, veste-te de festa, põe sobre a mesa da sala um ramalhete de flores rodeado de umas velas acesas, e, se tiveres incenso genuíno, deita-o sobre as brasas e canta em silêncio e serenidade o hino da libertação que a alma de teu ente querido está cantando. O pior que podes fazer é entristecer-te e 'fazer cena', porque estas vibrações de baixa frequência dificultariam o voo da tua gloriosa 'borboleta', prendendo-a desnecessariamente ao mundo material da ignorância. Deixa que ela voe livremente rumo ao Infinito, e não sejas tão egoísta e cruel de a quereres reter contigo na jaula que ela abandonou. Onde há verdadeiro amor e profunda afinidade espiritual não há distância nem separação no univero inteiro.
O melhor meio para não ter medo da morte é praticar diariamente a 'morte voluntária', antes que venha a morte compulsória. Essa 'morte voluntária', ou egocídio, se chama meditação, sobretudo quando ela atinge as alturas do 'terceiro céu', ousamadhi. Nessa meditação, o homem se desliga da sua ego consciência e se deixa invadir pela cosmo consciência. Embora fisicamente vivo, esse homem morreu praticamente, como dizem os grandes mestres espirituais da humanidade. 'Eu morro todos os dias - escreve Paulo de Tarso - e é por isto que eu vivo; mas não sou eu que vivo, é o Cristo que vive em mim.'
O melhor meio para ser realmente feliz e viver gloriosamente é morrer espontaneamente, antes de ser morto compulsoriamente."
Huberto Rohden - O Caminho da Felicidade
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