Desde que o chamado "espírito humano", discutido por milênios pelos
filósofos, foi varrido para debaixo do tapete pela ciência moderna, os
pesquisadores têm-se debatido com essa dúvida cruel. Afinal, como
explicar as diferenças de conhecimento e as habilidades inatas de cada
pessoa?
A explicação clássica da ciência moderna é a chamada "tabula rasa":
todos os humanos nasceríamos como uma folha em branco, na qual nossos
conhecimentos, talentos e inclinações seriam escritas a partir das
nossas experiências e vivências. Essa ideia moveu mais de um sistema
ditatorial, na tentativa de "educar" as crianças de um país segundo os
devaneios dos próprios ditadores.
Sem contar o bom-senso, tanto esses "experimentos políticos" em larga
escala, quanto os experimentos de laboratório, contradizem frontalmente
o princípio da "folha em branco". Tanto que os cientistas têm retornado
para algo absolutamente metafísico: o chamado "conhecimento
pré-experiência", um tipo de conhecimento que o ser humano adquiriria,
de alguma forma não compreendida, antes mesmo de ter qualquer
experiência.
Conhecimento inato
Agora, neurocientistas do Projeto Cérebro Azul,
um gigantesco projeto de pesquisas europeu que está tentando reproduzir
o cérebro humano em um computador, afirmam ter descoberto provas do
chamado "conhecimento inato".
O grupo descobriu que os neurônios fazem conexões independentemente da experiência de uma pessoa.
Tem sido aceito há bastante tempo que os circuitos neuronais se
formam e se reforçam por meio da experiência, um fenômeno conhecido como
plasticidade sináptica. Mas o Dr. Henry Markram e seus colegas agora
anunciaram "evidências radicalmente novas", segundo eles, de que esta
pode não ser a história toda. O grupo demonstrou que pequenos conjuntos
de neurônios piramidais no neocórtex se interconectam de acordo com
regras relativamente simples e "imutáveis".
Blocos de conhecimento
Os aglomerados neuronais agora descobertos contêm, em média, 50
neurônios. Os cientistas os veem como blocos básicos de conhecimento,
que contêm em si mesmos um tipo de conhecimento fundamental e inato -
por exemplo, representações de regras básicas de funcionamento do mundo
físico. O conhecimento adquirido - nossa memória - envolveria sempre a
combinação desses blocos construtores fundamentais, reunidos para formar
um nível mais alto do sistema.
"Isto pode explicar porque todos nós compartilhamos percepções
similares da realidade física, enquanto nossas memórias refletem nossa
experiência individual," diz Markram.
Segundo os pesquisadores, os princípios que governam a formação
desses microcircuitos inatos é incrivelmente simples. Basicamente,
quando dois neurônios estão simultaneamente conectados a um terceiro
neurônio vizinho, a probabilidade de que eles também estejam
interconectados é maior do que a média. Com base nessa observação, o
grupo construiu um modelo estatístico de ocorrência dessas
interconexões, que pode ser usado para estudar os fundamentos do
cérebro.
Conhecimento pré-experiência
Quando os cientistas testaram os circuitos neuronais de diferentes
ratos, todos apresentavam características similares. Ora, se os
circuitos tivessem sido formados unicamente das experiências vividas
pelos diferentes animais - como sugere a ideia da folha em branco -
esses circuitos deveriam divergir significativamente uns dos outros.
Desta forma, concluem, a conectividade neuronal deve de alguma forma ter
sido programada anteriormente à experiência.
"Desde John Lock, há cerca de 400 anos, as pesquisas sobre como o
cérebro aprende e se lembra têm sido guiadas pela crença de que nós
começamos como uma folha em branco e então imprimimos nela memórias de
cada nova experiência. A ideia de que a memória é como um Lego formado
por blocos fundamentais de conhecimento abre uma porta inteiramente nova
de pesquisas," afirma Markram.
Ressurreição do espírito?
A simulação do cérebro, e as tentativas de construção de cérebros
artificiais estão agora, pela primeira vez, permitindo que os cientistas
abordem diretamente a hipótese da "tabula rasa", passando da crença
para os experimentos diretos. E esses primeiros resultados discordam da
ideia que tem permeado a ciência durante todos esses séculos: de que o
homem é uma folha em branco na qual qualquer rabisco só é feito depois
que ele tem consciência.
Não há dúvidas de que o conhecimento, no sentido mais usual do termo,
o que inclui ler e escrever, reconhecer os amigos ou aprender um novo
idioma, resultam de nossa experiência. Mas a equipe do Cérebro Azul
demonstrou que uma porção do nosso conhecimento básico, em suas
representações mais fundamentais, pode vir escrito de fábrica. Contudo,
não será ainda a ressurreição do espírito, no sentido adotado pelos
filósofos - os cientistas preferem dizer que o conhecimento está
inscrito nos genes que dirigem a formação biológica do nosso corpo.
Mas a aceitação de um "conhecimento inato", pré-experiência,
representa um avanço considerável para a desmistificação da crença na
tábula rasa.
Diário da Saúde
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