segunda-feira, 11 de agosto de 2014

O coração do Templo

A simbólica do coração atravessa todas as tradições antigas e iniciáticas, pois ele é o centro do templo humano, o santo dos santos, órgão espiritual por excelência, o lugar da atividade transcendente onde a Consciência se manifesta.

Na simbólica tradicional e antiga o coração está analogicamente relacionado com o sol. O sol tem uma função essencial no sistema solar, dele irradiando a luz e a vida. No corpo humano, o coração é o fulcro das funções respiratória e circulatória, e é nele que se estabelece o encontro entre o movimento interno (circulação) e externo (respiração). Os dois movimentos de sístole (contracção) e diástole (expansão) têm correspondência na actividade solar. Do mesmo modo que se diz que o sol quando nasce é para todos, também o coração, quando irradia, o faz para todo o corpo.

As diversas tradições fazem desse lugar central o ponto de união entre as esferas do microcosmos e do macrocosmos, dizendo ser o altar do divino, o lugar onde se manifesta o reino de Deus, a morada de Brahma. É simbolizado pelo leão, animal solar e o rei da criação, sendo, por analogia, centro da emoção, dos afectos e da faculdade mediadora entre o céu e a terra.

O coração estabelece o elo de ligação entre o que está em cima e o que está e em baixo, exercendo uma função mercurial, sendo ao mesmo tempo o “cadinho”, um lugar de fusão , o lugar onde o “ovo” é chocado; na tradição oriental, é no coração que a grande ave mítica Hamsa vem depositar esse ovo, simbolizando a nova consciência nascente. O mesmo aspecto é sublinhado, quando se associa o coração ao cálice no ciclo do Graal. Na tradição islâmica é dito que o coração é o ponto de inserção do espírito na matéria, o lugar secreto do conhecimento onde a consciência se cruza com a energia, o lugar onde algo de novo está prestes a germinar.

Clemente de Alexandria dizia que “Deus é o coração do mundo”, e a tradição sufi afirma que “Alá é o coração dos corações”. Estas analogias servem para expressar a nobreza desta faculdade que nos habita e onde se firma a árvore do conhecimento, que se eleva do húmus para o supra-sensível, depois de receber o influxo da graça. Na tradição crística é dito :” Ninguém vai ao Pai senão por mim”, para significar que a reintegração só pode ser feita depois de o viajante ter atravessado o bosque dos espinhos do roseiral (a fragmentação) Daí a imagem do sagrado coração envolto em coroa de espinhos, ou seja, pelas dualidades dilacerantes, antes de alcançar a unidade. Essas dualidades fragmentadas são os nossos afectos, sentimentos e emoções geridos psicologicamente, mas atrás dessas emoções parcelares, existe algo de único, a que se chamou amor universal, ananda, compaixão, e que está subjacente à própria natureza do universo, e que anima a substância de tudo o que é manifestado. Por isso Cristo afirmou que “ o amor salvará o mundo”.

Porque o amor é a tecitura do cosmos, descobrimos em nós uma profunda ânsia de amor. Contudo, esse anseio está disperso e fragmentado em pequenas emoções. Somente o impulso unificador do coração permite aceder à reunião e à manifestação una desse amor. O coração é o lugar dessa androginia, síntese do pólo positivo, expansivo e masculino, e do pólo negativo, receptivo e feminino, donde emerge o novo Adão. É o lugar onde consciência e energia se tornam uma coisa só, o lugar onde terra e céu se encontram no homem.

Talvez o único propósito do ser humano, a sua única missão e destino, seja o de ser coração, onde a natureza humana se encontra com a consciência supra-sensível, que se manifesta pela graça que redime a natureza.

Na arquitectura humana, no templo que é o homem, o coração é o receptáculo do influxo da consciência. Mas como a podemos receber se o cálice está sempre cheio de pequenos desejos, emoções e pensamentos ?

A base do trabalho de auto-transformação é a auto-observação diária e permanente das dualidades e da fragmentação psicológica, que tomamos como a nossa vivência quotidiana e verdadeira. Vivemos num permanente jogo de enganos e auto-ilusão, que é facilmente constatável. O caminho árduo de sedução do eu psicológico é a base que prepara a disponibilidade interior para receber o impulso transformador.

Quando se auto-observa o jogo das polaridades colocamo-nos no ponto de vista unificador do cálice, apto a receber o influxo da consciência. Ao darmos a Deus o que é de Deus e a César o que é de César, estamos a dar o primeiro passo para a abertura ao mistério do coração, à compaixão que se encontra para além dos afectos e emoções parcelares. Essa compaixão existe em cada um, pronta a derramar-se no outro e no mundo. Todos temos o cálice pronto a receber e a dar, e a contribuir para o trabalho de redenção, isto é, introduzir mais consciência no mundo. Esse nobre ideal não está só ao alcance dos seres de excepção, aos Bodhisattvas que, conquistando o direito à libertação e ao nirvana, se recusaram a nele entrar, enquanto o sofrimento e a ignorância fossem o pão nosso de cada dia da humanidade. A natureza espera isso de cada um de nós.

O coração é a dupla porta, que reflecte a aspiração natural do homem através do acto inclusivo do coração, no templo que somos, o lugar de recepção do amor que irradia para a natureza. O coração é a sede e o trono do divino no ser humano, que nada espera. A atitude de não exigência e disponibilidade, a par da confiança e da abertura são essenciais. Não há coração aberto à graça e ao mundo se não houver receptividade, candura, abertura, alargando o espaço natural do coração disposto a receber o impulso transformador da consciência.

G.M.

http://hermessociety.org/index.php?option=com_content&task=view...

por Maria Elisete

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