Entrevista do Dr. Fritjof Capra, físico, aJocelyn Ryder-Smith da BBC de Londres
Os físicos que trabalham com as partículas subatômicas e os místicos
orientais não têm, aparentemente, nada em comum. De fato, os físicos
interessam-se no estudo e na avaliação precisa do mundo material,
enquanto os místicos se esforçam por compreender o mundo interior do
espírito e tratam de penetrar, assim, na realidade. Não obstante, o Dr.
Fritjof Capra, que dá conferências e dirige, no campo da física,
investigações sobre as partículas na Universidade da Califórnia, tem
descoberto importantes paralelos entre estas duas visões do mundo. O seu
livro “O Tao da Física”, expõe seu ponto de vista sobre este aspecto.
Assim, sem querer diminuir as diferenças que existem entre a física e o
misticismo, considera que as investigações nestes dois campos tendem a
uma melhor compreensão do mundo, e que os resultados que daí derivam são
fundamentais aos mesmos. Certamente o Dr. Capra não é o primeiro
cientista a pôr em evidência este tipo de paralelo. Ele o explica em
entrevista a Jocelym Ryder-Smith, durante o Programa “Einstein e Buda”,
na BBC de Londres.
Dr. Fritjof Capra – Na realidade, cito, no começo do meu livro “O Tao
da Física”, três físicos: Werner Heisenberg, Robert Oppenheimer e Niels
Bohr. Estes três cientistas, que estão entre os mais eminentes de nossa
época, destacam as surpreendentes similitudes que existem entre os
conceitos da física moderna e os da filosofia oriental.
Jocelyn Ryder-Smith – Evidentemente, estes conceitos vieram completar
as visões do mundo dos físicos e dos místicos orientais. Para você, Dr.
Capra, a idéia de que temos, cada um de nós, um ponto de vista sobre o
mundo, é essencial, pois você considera que o que parece real e
importante para cada indivíduo, dá forma a toda sua vida. Entretanto,
todos percebemos com a ajuda de nossos cinco sentidos: vemos, tocamos,
gostamos, escutamos e olhamos as mesmas coisas. Podem realmente existir
pontos de vista diferentes sobre o que nos comunicam os nossos sentidos?
Temos verdadeiramente, em nossa civilização ocidental, um enfoque
diferente?
Dr. Capra – Quando estamos resfriados ou com gripe, achamos que
“pegamos” um vírus ou um micróbio. Mas um brasileiro, membro de uma
tribo analfabeta, atribuirá seu resfriado à uma má ação cometida contra
sua família, ou aos maus espíritos susceptíveis de tê-lo rodeado, ou
ainda à um feitiço que alguém lhe tenha feito. Esta interpretação de
enfermidade ilustra a maneira em que os pontos de vista podem revelar-se
radicalmente diferentes.
Ryder-Smith – Entretanto, se nos referimos a elementos que a maioria
das pessoas considera como constantes ao seu redor, como as pedras, as
árvores, as mesas, as casas, pode-se supor uma diferença de ponto de
vista sobre os elementos físicos desta natureza?
Dr. Capra – Naturalmente. Basta compreender que a pessoa que vivia na
época medieval, ou antes, cria que tudo estava animado por espíritos ou
fantasmas, e não pensava em tudo em termos de objetos separados, de
sistemas mecânicos, etc. Esta concepção que compartilhamos agora, ao
vivê-la em nossa realidade cotidiana, nasceu essencialmente no Século
XVII com o desenvolvimento da ciência.
Ryder-Smith – A concepção científica do mundo que prevalece em nossa
civilização foi consideravelmente modificada em alguns decênios. Até os
trabalhos de Einstein, a física se fundamentava na concepção do mundo
que vinha do século dezessete, elaborada, entre outros, por Newton,
Descartes e Bacon.
Dr. Capra – Poderíamos dizer que esta visão do mundo era
“mecanicista”, pois considerava o mundo como uma máquina, composta de
elementos separados que funcionavam conjuntamente. O observador era
considerado como objetivo, ou seja, independente deste universo
mecânico. Os diversos elementos, compostos de blocos básicos de
construção, pareciam feitos de uma substância material fundamental.
Então, este ponto de vista foi enormemente modificado durante os
primeiros decênios do Século XX. Pela primeira vez os físicos estudaram
os átomos, analisando a sua estrutura, e depois as partículas
subatômicas. Assim descobriram que a maioria dos conceitos clássicos já
não era fiáveis, pois não correspondiam à esta nova realidade atômica e
subatômica. A atual concepção já não considera o mundo como uma máquina
composta de elementos separados, mas muito como um conjunto orgânico, ou
rede, uma teia de aranha tecida por todas estas conexões na qual o
observador se encontra fundamentalmente incluído.
Ryder-Smith – Este ponto de vista é o da física moderna. Hoje os
físicos estudam as partículas subatômicas como os prótons e nêutrons no
núcleo atômico, e os elétrons e outras partículas que circulam ao seu
redor.
Dr. Capra – Um dos resultados mais espetaculares e fundamentais
destas investigações é dar-se conta de que não se pode compreender estas
partículas atômicas como entidades físicas distintas e isoladas. Muito
ao contrário, existem inter-relações ou correlações entre diversos
processos de observação e avaliação. Vemo-nos, pois, forçados a concluir
que se pode declarar razoavelmente que um objeto se compõe de
moléculas, que estas moléculas se compõem de átomos, e que os átomos
estão constituídos por partículas, que já não são entidades
independentes, mas interconexões numa rede única e dinâmica de relações.
Então torna-se evidente que se estas partículas não são independentes,
conseqüentemente, os átomos não são independentes, nem por outra parte
os sólidos, líquidos e gases formados por estes átomos. Assim, tudo está
inter-relacionado e não constitui nada mais que um único conjunto
global.
Ryder-Smith – Assim, a noção de objetos existindo separadamente uns
dos outros, que nos parece, a todos nós, uma simples questão de sentido
comum, na realidade é uma idéia que criamos de maneira completa. Os
físicos não podem tratar isoladamente objetos independentes quando
estudam o mundo das partículas subatômicas – este mundo incrivelmente
pequeno que serve de base a tudo o que podemos ver e tocar. Os físicos
declaram que neste nível tudo está relacionado, e isto constitui o
primeiro paralelo importante com o misticismo.
Dr. Capra – A noção que exclui toda separação de um elemento com
relação a outros no universo é precisamente um dos pontos chave das
tradições místicas, não somente no Budismo, no Taoísmo ou no Hinduísmo,
mas também nas tradições místicas ocidentais. Elas sobressaem sempre que
a realidade é um todo unificado, recordando que a noção de objetos
separados não é mais que uma ilusão. Aí é onde intervêm uma diferença
importante entre os pontos de vista dos físicos e dos místicos. Como
físico, eu diria que a noção de objeto separado é uma idealização, uma
abordagem que, embora resulte muito útil, fundamentalmente não é exata. O
místico qualificará esta noção de ilusória, ressaltando que embora
experimente o efeito, não poderá discernir a verdadeira realidade.
Ryder-Smith – Pode-se fazer outro paralelo, recordando que a física,
como o misticismo, não se ocupa do sentido comum: você não pode
basear-se no sentido comum para aprender, por exemplo, a noção de um
todo unificado. O sentido comum não tem lugar nem numa nem noutra destas
visões do mundo.
Dr. Capra – Isto se explica pelo fato de que, nestes casos, os
cientistas e os místicos levam as suas investigações muito mais além do
mundo da percepção sensorial cotidiana. Os físicos utilizam instrumentos
que representam uma extensão dos nossos sentidos ordinários, mas nunca
podemos ver, ouvir nem tocar um átomo diretamente. Os místicos entram
conscientemente em estados meditativos profundos e ultrapassam
amplamente os limites do mundo sensorial e das percepções ordinárias.
Entretanto, o místico como o físico, ambos dão-se conta de que neste
campo precisam de conceitos, noções ou teorias completamente fora do
comum, e na realidade se servem de conceitos muito similares com
respeito a isto.
Ryder-Smith – Outro traço que também pode ser encontrado entre os
místicos e os físicos e que se opõe ao senso comum é que, de fato, os
dois lidam com paradoxos. Assim, admite-se na física o fato de que a luz
é composta de um fluxo de partículas – sendo essencialmente uma onda.
Entretanto, o bom sentido nos diz que uma coisa pode ser um pequeno
ponto, ou ser uma onda que se propaga, mas não as duas coisas ao mesmo
tempo. Este é um dos numerosos paradoxos que existem na física moderna.
Dr. Capra – Certamente estes paradoxos representaram uma função
crucial no descobrimento de toda a física atômica. Compreenda que todo o
problema resulta da utilização de uma linguagem obsoleta para explicar
fenômenos novos, ou de servir-se de termos cotidianos para descobrir
fenômenos fora do comum. Tanto os místicos como os físicos têm admitido a
existência destes paradoxos.
Ryder-Smith – Parece que a teoria da relatividade é a que estabeleceu
os paradoxos mais conhecidos. A ficção científica apoderou-se da noção
de relação entre espaço e tempo, mas esta relação certamente não é
evidente para todos.
Dr. Capra – A observação dos movimentos de objetos numa velocidade
muito elevada – próxima da velocidade da luz – permite apreciar
numerosos fenômenos. Tome por exemplo uma caneta e a faça circular
extremamente rápido numa velocidade próxima à da luz. Observará que esta
caneta encolhe-se na medida que a velocidade se eleva. O que ocorre na
realidade? Qual é o comprimento real da caneta? Este paradoxo é
resolvido por intermédio da teoria da relatividade, que supõe uma
realidade do espaço e do tempo em quatro dimensões. A caneta é uma
projeção em três dimensões de uma realidade de quatro dimensões. De
fato, os físicos estão tão habituados, no terreno da matemática, a este
fenômeno de redução dos objetos a velocidade elevada que já não
constitui um paradoxo para nós.
Ryder-Smith – Por outro lado, os físicos têm o costume de considerar a
massa e a energia como uma só e única coisa, enquanto que esta noção
não é habitual para a maioria da gente. Quando, neste campo, o estudo é
levado até as partículas subatômicas, estas podem ser consideradas como
massas de energia, animadas por um movimento constante. De fato, neste
nível não existe nada estático nem fixo. Do ponto de vista da física
moderna, estes aspectos sobre o mundo encontram um paralelo na concepção
dos místicos.
Dr. Capra – Com efeito, estas duas noções – a da unificação ou
inseparabilidade do espaço e do tempo, e a da equivalência entre massa e
energia – estão igualmente presentes no ensinamento dos místicos. Não
utilizam os mesmos termos, claro, mas sustentam constantemente que se
deve ter uma compreensão dinâmica do universo – tal como movimento,
cadência, vibração. Não existem estruturas rígidas, nem substância
material. Tiramos esta lição exatamente da relatividade. No início
fiquei abismado, mas depois muito satisfeito por comprovar esta
coerência. Segundo as tradições orientais, só pode ter uma compreensão
dinâmica do universo se alguém der conta de que tempo e espaço são
inseparáveis. Assim, os Budistas consideram que o tempo e o espaço se
interpenetram, o que descreve perfeitamente a noção de tempo e espaço da
teoria da relatividade.
Ryder-Smith – Existe ainda outro vínculo entre os físicos modernos e
os místicos orientais, pois ambos consideram que não se pode ser um
observador objetivo separado do mundo que é observado.
Dr. Capra – Não se aprende o conhecimento místico nos livros nem na
escola. Deve ser adquirido pela experiência e exige o total envolvimento
do ser. Enquanto isso, os físicos contemporâneos começaram a se referir
ao participante, em vez do observador. Sendo assim, o conhecimento da
relevância da participação constitui um aspecto muito importante em
todas as tradições místicas.
Ryder-Smith – Estes paralelos entre os físicos e os místicos são os
que você considera como os mais importantes. Eles apresentam dois
aspectos primordiais.
Dr. Capra – De fato. O primeiro aspecto diz respeito à unidade
fundamental e à interdependência de todos os fenômenos. O segundo aborda
a natureza intrinsecamente dinâmica da realidade. Existem outros
paralelos, mas estes dois são os mais importantes.
Ryder-Smith – Mas, são tão profundas estas semelhanças? Podem os
físicos e os místicos utilizar termos idênticos para descrever sua
concepção da realidade, embora os paralelos sejam talvez superficiais?
Dr. Capra – Esta suposição é muito interessante, pois de fato é
exatamente o que pensei no princípio. Disse a mim mesmo que estes
paralelos efetivamente não podiam ser mais que superficiais. Minha
convicção não podia firmar-se mais do que a descoberta de outros
paralelos que realmente reforçaram a coesão deste ponto de vista... e é
precisamente o que ocorreu. Descobri que os paralelos que existem em
diversos campos se reforçavam mutuamente. Por esta razão agora considero
que a visão do mundo descrita nas tradições místicas representa os
fundamentos filosóficos que melhor correspondem às teorias da ciência
moderna.
Ryder-Smith – Se os cientistas chegam a conclusões idênticas às que
resultam do conhecimento intuitivo dos místicos, não seria normal que
alguns deles sejam atraídos para o misticismo?
Dr. Capra – Alguns cientistas, entre os mais eminentes,
aproximaram-se muito do misticismo. A este respeito pode ser citado
Einstein ou Niels Bohr, que levaram uma vida em completo acordo com suas
descobertas científicas. Desgraçadamente, estes casos são bastante
raros. Na realidade, um cientista não está obrigado a levar uma vida que
esteja em harmonia com seus trabalhos científicos, contrariamente aos
místicos, que devem orientar sua vida de tal modo que possam alcançar a
revelação. Entretanto, os cientistas podem chegar a certo desapego.
Ryder-Smith – Os místicos são pródigos em seus ensinamentos há 2500
anos pelo menos, enquanto que na física o estudo das partículas
subatômicas não data mais do que deste século. Ademais, as noções
científicas não param de evoluir e de se modificar. Pode deduzir-se que
os paralelos existentes atualmente entre a ciência e o misticismo são
simplesmente temporais? Os investigadores podem, de fato, mudar seu
ponto de vista a cada momento.
Dr. Capra – Este argumento tem fundamento, e esta questão requer, sem
dúvida alguma, muita prudência e é delicada de ser tratada. Certamente,
não posso prever com acerto a evolução da ciência, mas posso
indicar-lhe pelo menos quais são minhas convicções a este respeito.
Creio que apesar das modificações que experimentem as teorias
científicas ao evolver-se, não farão, de fato, mais que reforçar do que
debilitar suas semelhanças com a tradição mística. Ademais comprova-se
que tendências similares se revelam atualmente em todas as disciplinas
científicas. Quando escrevi o “Tao da Física” faz uns seis anos, então
não interessava mais do que nos paralelos que existem entre as tradições
místicas e a física. Depois adquiri certas noções de biologia,
psicologia, ciências sociais, etc. e pude então descobrir que estes
paralelos existem igualmente em outros campos. Por conseguinte,
parece-me que a ciência inteira, como um todo, experimenta uma mudança
muito profunda. Esta evolução está orientada para uma visão do mundo que
se poderia qualificar de holística, ou de ecológica, apresentando
aspectos muito parecidos aos das tradições místicas. Estou convencido de
que estas semelhanças se reforçarão, e não se debilitarão no futuro.
Ryder-Smith – Dr. Capra, você considera que as semelhanças que
existem entre a ciência e o misticismo têm importantes implicações para
os cientistas e para o nosso futuro.
Dr. Capra – Efetivamente estou
convencido disto. Esta convicção é resultado da seguinte observação: o
físico moderno pode orientar-se em duas direções: Buda ou a Bomba. Na
atualidade, um terço ou a metade de nossos investigadores e de nossos
engenheiros trabalham no campo militar, e assim utilizamos este fabuloso
potencial de criatividade e de engenhosidade humanas para conceber
armas dotadas de um poder destruidor cada vez maior. Considero que,
nesta situação, é muito importante ressaltar que a física também pode
tomar um caminho muito diferente, para uma concepção próxima à dos
místicos. Esta concepção implica um certo estilo de vida que proíbe, por
exemplo, prejudicar seus irmãos e irmãs, ou outras criaturas. Então
deve ser reforçada a proteção da vida e não a sua destruição. Penso que
os paralelos que existem com o misticismo são de extrema importância.
Não somente são fascinantes, mas que também são muito válidos social e
culturalmente.
Esta revolução constituiu tal desafio que os físicos tiveram que
atravessar uma profunda crise. Lendo os trabalhos de Bohr, de
Heisenberg, de Einstein e outros, é muito interessante observar que
todos declaram atravessar uma crise muito real. Sem dúvida esta crise é
essencialmente intelectual, mas é acompanhada igualmente de um choque
emocional e, talvez, de uma crise existencial. Isto me fez compreender a
natureza quase idêntica da crise que atualmente devemos defrontar como
sociedade. Experimentamos, de fato, uma crise econômica, crise provocada
pela utilização de armas nucleares, uma crise ecológica, um aumento da
violência, da inflação, do desemprego, etc. Considero agora que estes
fenômenos são as diferentes manifestações de uma só e única crise, que é
essencialmente uma crise de percepção.
Ryder-Smith – Esta crise de percepção é provocada pelo fato de que a
maior parte de nós ainda está obstinadamente ligada uma visão caduca do
mundo. Ainda seguimos a via traçada por Newton e Descartes, na busca de
respostas baseadas no raciocínio analítico. Dividimos os nossos
problemas em elementos e logo nos esforçamos em dispor corretamente as
peças do quebra-cabeça. Dr. Capra, pensa que deveríamos também pôr
ênfase nas relações entre estes elementos, e considerar os problemas num
contexto mais amplo? No livro que vai publicar dentro de pouco tempo,
sob o título “Tempo de Mudança” (The Turning Point), você advoga em
favor de uma visão dos sistemas baseada numa análise funcional.
Dr. Capra – Esta visão realça a interdependência e a inter-relação
dos sistemas. Um sistema é um conjunto integrado, cujas qualidades
essenciais derivam da inter-relação e da interdependência de seus
componentes. De fato, em meu livro, trato principalmente de sistemas
vivos. Todo organismo é um sistema vivo, desde a simples célula até o
músculo ou um órgão do corpo humano. O corpo humano é, no seu conjunto –
espírito/corpo – um sistema. Um sistema social é um sistema vivo. Por
exemplo, uma família, um grupo social, uma nação, etc. Todos estes
sistemas são conjuntos integrados, regidos por princípios de organização
bastante idênticos. Como pode ver, a concepção tradicional punha ênfase
nos elementos, simplificando e explicando o conjunto em função de suas
partes, enquanto que a análise funcional está em oposição a esta
concepção, completando-a, pois se esforça em compreender o todo em
função das relações entre suas partes. Entretanto, estas duas visões são
necessárias, mas nossa cultura até agora só dedicou sua atenção ao
raciocínio redutor, ignorando a noção funcional dos sistemas.
Ryder-Smith – A análise funcional estuda a maneira em que todas as
partes de um sistema afetam todas as demais partes. Pelo contrário, o
investigador analítico “reducionista” examina um elemento para
compreender a maneira em que afeta o elemento seguinte. Investiga assim a
relação direta de causa e efeito, em linha reta. Este raciocínio linear
caracteriza bem o enfoque analítico.
Dr. Capra – Segundo o raciocínio linear, uma ação que dá um resultado
correto automaticamente terá resultados melhores se prosseguir. Ao
contrário, segundo o raciocínio não-linear, a continuação desta ação
pode dar melhores resultados durante certo tempo, e depois se
deteriorará e a situação piorará. Existe, então, um valor ótimo para
cada coisa, e este princípio se aplica igualmente à dimensão de uma
empresa, ou a qualquer instituição social, por exemplo.
Ryder-Smith – Dr. Capra, pensa que outro enfoque tradicional também
cede terreno ante a nova visão do mundo? De fato, a ciência sempre foi
considerada como neutra, ou seja: que um cientista trata simplesmente de
descobrir a realidade do mundo que o rodeia, sem emitir opinião sobre o
que está bem ou mal.
Dr. Capra – Em primeiro lugar, os trabalhos cotidianos de um
investigador são geralmente independentes de qualquer opinião. Agora, no
que diz respeito a minha própria esfera de atividade no campo da
física, ao estudar por exemplo a interação entre os prótons e os
nêutrons para determinar a massa do nêutron, posso expressar esta massa
como uma quantidade que não dependa prá nada de meus valores morais.
Entretanto, me servirei destes trabalhos num contexto maior: seja
estudando e determinando a massa do nêutron para demonstrar as
magníficas correlações que existem no mundo subatômico, seja utilizando
estas investigações para elaborar uma bomba de nêutrons. Estes dois
enfoques são muito diferentes, e o contexto mais amplo, no qual pode ser
aplicada a ciência, depende muito dos valores morais. Sendo assim, ao
se esforçar em obter uma ciência neutra, ocorre em geral que os
cientistas terminam por admitir tacitamente os valores que dominam a
nossa sociedade. Mas, por razões culturais e históricas, vivemos numa
sociedade muito desequilibrada, que põe ênfase em certos valores e
ignora os demais. Por conseguinte, a adoção tácita ou explícita deste
sistema de valores desequilibrados acarreta um desequilíbrio no campo
científico, tecnológico, político, social, etc.
Ryder-Smith – Você considera este desequilíbrio nos valores segundo os termos de uma das filosofias orientais antigas.
Dr. Capra – Pode se descobrir o sistema de valores de diferentes
maneiras. Uma delas, que considero particularmente útil, está
fundamentada na terminologia chinesa do “Yin” e o “Yang”. Em sua
filosofia e sua cultura, os chineses julgaram que existiam dois
princípios opostos subjacentes, o do Yang e o do Yin. O Yang é a
afirmação de si mesmo, o Yin é a integração. O Yang é a análise, o Yin é
a síntese. Por conseguinte, o Yang é a ciência, o Yin é a religião. O
Yang é a expansão, o Yin é a conservação; o Yang é a competição, o Yin, a
cooperação. Compreende-se, imediatamente, segundo estes pares de
opostos, que constantemente estamos pondo demasiada ênfase no Yang,
enquanto ignoramos o Yin. Além disso, no sistema chinês, o Yang está
associado aos valores masculinos, enquanto que o Yin se relaciona com os
valores femininos. Na nossa época, as feministas freqüentemente têm
sustentado que em nossa sociedade, que adotou valores patriarcais, os
homens jogam um papel preponderante, o que dá um caráter prioritário às
qualidades masculinas em relação com as qualidades femininas.
Ryder-Smith – A nosso parecer, este enfoque analítico dominado pelo
princípio Yang tem conduzido aos graves problemas que confrontamos hoje
em dia. Você cita como exemplo a medicina...
Dr. Capra – Nossa ciência já não é capaz de compreender nem de tratar
numerosas enfermidades graves e freqüentes que nos afetam hoje, pois
considera o corpo humano como uma máquina composta de diversas partes.
Os diferentes especialistas que tratam estas partes freqüentemente não
têm em conta as estreitas relações que existem entre elas, a
interdependência do corpo e da mente, nem do ajuste de todo o organismo
num sistema social e num ambiente natural. Todos estes aspectos são
muito importantes na enfermidade. Ademais, dado a que a visão do mundo
que subjaz na medicina atual não permite abordar estas relações
recíprocas, em geral somos incapazes de tratar nossas enfermidades mais
graves. Podemos observar um fenômeno muito similar no campo da economia:
os economistas têm tendência a isolar a economia do sistema social e do
ecossistema que lhe servem de pano de fundo. Por conseguinte servem-se
de conceitos fundamentais tais como o lucro, a produtividade, o produto
nacional bruto, etc. de maneira muito limitada, embora não podem
compreender fenômenos como a inflação, que devem ser considerados em seu
contexto social e ecológico mais amplo. O mundo está hoje tão povoado
que ninguém pode estudar um problema separando-o de seu contexto.
Ryder-Smith – E os economistas que desdenham ao considerar a economia
de uma nação num contexto suficientemente global, impõem também valores
estreitos na opinião que formulam.
Dr. Capra – De fato. Pensam por exemplo que a expansão é desejável. A
seu parecer, o Produto Nacional Bruto deveria crescer constantemente,
são favoráveis à expansão tecnológica, ao crescimento econômico, ao
aumento das técnicas e das instituições. Por conseguinte, chocam
inexoravelmente com os limites naturais do ecossistema, já que nosso
globo tem um caráter limitado, e não pode haver um crescimento
insensível a um ambiente natural limitado. Isto é uma das causas
fundamentais da maior parte dos nossos atuais problemas econômicos.
Ryder-Smith – E estes problemas poderiam ser resolvidos adotando um enfoque ecológico para abordar as questões econômicas.
Dr. Capra – Na natureza, todas as substâncias e as matérias
reciclam-se permanentemente. Por conseguinte, uma economia fundamentada
na reciclagem permanente de seus componentes será estável. Certamente
isto não ocorre hoje, pois temos uma economia baseada no desperdício e
no crescimento não-diferenciado, na superprodução, no consumo excessivo,
etc.
Ryder-Smith – Segundo você, nossos problemas econômicos continuarão
enquanto os consideremos de um ponto de vista estreito e demasiado
analítico. Mas você procura resolvê-los examinando a economia num
contexto muito global.
Dr. Capra – Chamo-o freqüentemente “ponto de vista ecológico”. É um
tomar de consciência que lhe faz dar-se conta de que o mundo é
fundamentalmente interdependente, que todos os fenômenos dependem um do
outro. Estamos incrustados num ambiente natural assim como num contexto
social que devem ser levados em conta. Devemos, pois, compreender que
destruindo nosso meio ambiente, poluindo-o ou deteriorando-o de uma
maneira ou de outra, terminaremos por destruirmos a nós mesmos. Este
tomar de consciência é necessário.
Ryder-Smith – Seu pensamento,
como o tema de seu livro “Tempo de Mudança” – The Turning Point –
(publicado no Brasil sob o título “O Ponto de Mutação”), baseia-se
essencialmente no enfoque ecológico.
Dr. Capra – Dou ao conceito da ecologia um sentido muito profundo. Na
realidade, distingo na minha obra a ecologia “profunda” da ecologia
“superficial”. A ecologia “profunda” implica que se admite esta
interdependência fundamental a todos os níveis. Isto envolve igualmente
as classes sociais, e diversos exemplos provam que o equilíbrio
ecológico exige também uma justiça social, e que uma má – ou desigual –
distribuição da riqueza, que caracteriza a situação atual, deteriora o
ecossistema, cujo desequilíbrio torna a ser acentuado.
Ryder-Smith – Este desequilíbrio é um dos numerosos problemas
causados pela falta do equilíbrio por nós enfocado, que põe ênfase
abusiva na análise e no tratamento de problemas tomados isoladamente,
ignorando o ponto de vista funcional que permite ver as coisas no seu
contexto.
Dr. Capra – Sem embargo, todas as ciências experimentam atualmente
uma profunda mutação. Entretanto, esta evolução não fez mais que
começar, e eis aqui então, a “Mudança” a que me refiro. Nós nos
aproximamos da encruzilhada, mas ainda não esta lá. Em todos os campos,
seja na biologia, na medicina, na psicologia, na economia, na física, a
análise funcional não é mais que um ponto de vista minoritário, mas não
deixa de ganhar terreno. Não somente os cientistas estão a seu favor,
mas diversos grupos sociais, assim como associações, reivindicam-no numa
concepção mais global. Todos estes movimentos vão se reunindo para
formar o que chamo de nova civilização. Em meu livro, adoto um ponto de
vista evolucionário para examinar o nascimento de uma cultura ou de uma
civilização que alcança o seu apogeu depois declina e desaparece. Está
claro que isto não é original. Historiadores como Toynbee já descreveram
esta evolução. Mas quando uma cultura declina, assiste-se
simultaneamente o nascimento e o crescimento de outra cultura, que
termina por ocupar o seu lugar. A mim me parece que assistimos
atualmente este fenômeno. Os principais partidos políticos, os sistemas
educacionais mais importantes, as maiores empresas, etc. pertencem,
todos, à cultura que desaparece, enquanto que estas novas tendências
científicas e sociais caracterizam o aparecimento da nova civilização.
Assim sendo, como é evolucionário, este fenômeno deve inevitavelmente
estabelecer-se. Queiramos ou não, os esquemas evolutivos que formam em
períodos muitos longos, terminam sempre por acontecer. Por conseguinte, a
nova cultura aparecerá e terminará por dominar e substituir a antiga.
Ryder-Smith – A condição de que não sejamos destruídos no intervalo,
nos dominará. Admitindo que sobrevivamos, veremos que esta nova
civilização estará caracterizada, entre outras coisas, pelo papel das
mulheres e pelos valores femininos.
Dr. Capra – Efetivamente nos orientamos para uma sociedade na qual as
mulheres serão iguais aos homens de pleno direito, e representarão
papéis equivalentes. O elemento feminino – ou se preferir, o princípio
feminino – terá um estatuto perfeitamente igual ao princípio masculino.
Considero que esta evolução muito profunda, que já está em curso, embora
progride lentamente e como a desgosto, desembocará na formação de uma
sociedade muito diferente.
Ryder-Smith – Esta nova sociedade irá a par com um novo enfoque da ciência e da tecnologia.
Dr.Capra – Eis aqui a minha visão da evolução que acontecerá nos anos
80: a nova cultura seguirá seu progresso, e assim alcançaremos a
“Mudança”, enquanto que as disciplinas científicas mudarão as suas
concepções para pôr ênfase nas noções de interconexão e de
interdependência. Assim, vamos reorientar nossa tecnologia, e a passar,
por exemplo, da energia nuclear à energia solar, de uma tecnologia em
grande escala a uma tecnologia em pequena escala. Todas estas
transformações não significam uma volta atrás. Compreendam bem: devemos
inventar novas tecnologias com vistas a resolver nossos problemas, mas
em geral serão mais simples e, na realidade, mais belas e mais elegantes
do que estas máquinas gigantescas de que dispomos atualmente.
Ryder-Smith – O enfoque holístico, ecológico, certamente cada vez
mais atrai um maior número de pessoas. Mas, o que ocorrerá se não
modificarmos nosso comportamento a tempo?
Dr. Capra – Se não mudarmos, a situação será completamente trágica:
exterminaremos a nós mesmos com nosso armamento nuclear – o que é muito
possível – ou nos envenenaremos poluindo nosso meio ambiente. Já
destruímos bastante a vida em nosso planeta de numerosas maneiras, é,
pois, tempo de efetuar uma rápida virada.
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