quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Um trabalho a longo prazo

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           A maior parte das pesquisas atuais da área da psicologia que têm como objeto de estudo o controle das emoções concentra-se em como dirigir e modular as emoções depois de que elas já invadiram a nossa mente. O que está faltando, ao que parece, é o reconhecimento de que uma atenção mais desenvolvida e uma clareza mental – a “presença mental” do budismo – podem desempenhar papel central nesse processo de controle. Reconhecer a emoção no exato momento em que ela surge,compreender que ela não é nada mais do que um pensamento – desprovido de existência intrínseca -,permitir que ela se dissipe de maneira a evitar a reação em cadeira a que via de regra daria origem são atitudes que estão no cerne da prática contemplativa budista.
            Em obra recente, Paul Ekman, que participa há muitos anos dos encontros entre o Dalai Lama e importantes cientistas promovidos pelo Mind and Life Institute, enfatiza a utilidade de se considerar com atenção as sensações emocionais, como na vigilância e na presença desperta do budismo. Ele considera que essa é uma das maneiras mais práticas de administrar as emoções, ou seja, decidir se queremos ou não expressá-las em palavras e em atos.
            Sabemos que a maestria em qualquer disciplina, música, medicina, matemática etc., requer treinamento intensivo. No entanto, parece que no Ocidente – com exceção da psicanálise, cujos resultados são, na melhor das hipóteses, incertos, e o processo, doloroso – não é comum que sejam empreendidos esses esforços persistentes que visam, a longo prazo, transformar os estados emocionais e o temperamento. A própria meta da psicanálise é diferente da estabelecida pela psicologia positiva ou pelo budismo, que buscam não apenas “normalizar” o nosso modo neurótico de funcionar no mundo. A condição considerada como “normal” é, nos dois casos, apenas o ponto de partida, não o objetivo. A nossa vida vale muito mais do que isso! Disse-me certa vez Martin Seligman: “O melhor que ela [a psicanálise] pode fazer é nos levar de menos dez para zero”.
            Assim, a maior parte dos métodos conhecidos pela psicologia ocidental para modificar de maneira duradoura os estados efetivos diz respeito sobretudo ao tratamento de estados patológicos. Diz um artigo recente escrito por psicólogos ocidentais e budistas:
                        Com poucas e notáveis exceções – entre as quais o desenvolvimento da “psicologia positiva” – nenhum esforço tem sido realizado no sentido de cultivar atributos positivos da mente em indivíduos que não estejam sofrendo de problemas mentais. É importante sublinhar o fato de que o treinamento para se obter a excelência em qualquer domínio requer uma dose considerável de prática. As abordagens ocidentais não incluem esse esforço persistente e a longo prazo para se fazer mudanças duradouras nos estados ou traços emocionais. Nem mesmo a psicanálise chega a requerer um trabalho de décadas, como o que os budistas consideram necessário para cultivas sukha.
            Esse esforço, no entanto, é muito desejável. Precisamos nos livrar das toxinas mentais e, ao mesmo tempo, cultivar os estados da mente que contribuem para o equilíbrio emocional e asseguram o bom desenvolvimento de uma mente saudável. Grande parte das emoções conflituosas são problemas mentais. Uma pessoa possuída por um ódio feroz ou uma inveja obsessiva não pode, em sã consciência, ser considerada alguém que tem uma mente sadia, mesmo que não seja candidata aos tratamentos psiquiátricos. Como essas emoções estão integradas à nossa vida cotidiana, a importância e a urgência de lidar com elas parecem não estar tão claras quanto deveriam. Como resultado, a ideia de treinar a mente não figura entre as preocupações que pressionam o homem moderno, como o trabalho, as atividades culturais, os exercícios físicos e o lazer.
            O ensino dos valores humanos é em geral considerado uma incumbência da religião ou da família. A espiritualidade e a vida contemplativa são reduzidas, assim, a meros complementos vitamínicos da alma. Os conhecimentos filosóficos que adquirimos são quase sempre distantes da nossa prática, e cabe ao indivíduo escolher suas próprias regras da vida. Mas em nossa época, a pseudoliberdade de fazer tudo o que passa pela cabeça e a falta de referências deixam o indivíduo infeliz desamparado. As considerações abstratas em geral incompreensíveis da filosofia contemporânea, somadas ao ritmo febril da vida cotidiana e à supremacia da diversão e do entretenimento, deixam pouco lugar para a busca de uma fonte de inspiração autêntica quanto à direção que podemos dar à nossa vida. O Dalai Lama enfatiza: “Gostaríamos que a espiritualidade fosse fácil, rápida e barata.” Ou seja, inexistente. É o que Chögyam Trungpa denominou de “materialismo espiritual”. Pierre Hador, especialista em filosofia antiga, sublinha que “a filosofia não é senão um exercício preparatório para a sabedoria” e que uma verdadeira escola filosófica corresponde antes de tudo a determinada escolha de vida.
            É necessário reconhecer que oferecemos uma resistência fenomenal à mudança. Não falamos apenas da alegria e do vigor com que a nossa sociedade adota como tendência as novidades superficiais, mas de uma inércia profunda no que tange a qualquer transformação genuína do nosso modo de ser. A maior parte do tempo não queremos nem ouvir falar da possibilidade de mudar e preferirmos tratar com escárnio aqueles que buscam soluções alternativas. Ninguém quer ser raivoso, ciumento ou orgulhoso, mas cada vez que cedemos a essas emoções, usamos a desculpa de que isso é normal, que faz parte dos atos e baixos da vida.
            Então, por que mudar? Seja você mesmo” Divirta-se bastante, compre um carro novo, mude de ares, consiga uma nova amante, tenha tudo, farte-se de tudo o que é estúpido e supérfluo, mas acima de tudo, jamais toque no essencial, porque isso exige um trabalho duro, um esforço verdadeiro. Uma atitude como essa seria justificada se estivéssemos satisfeitos com o nosso destino. Mas estamos mesmo? Citando Alain mais uma vez: “Os insanos são mestres no proselitismo e, principalmente relutam em curar-se”.
            Como o ego é recalcitrante e revolta-se cada vez que a sua hegemonia é ameaçada, preferimos proteger esse parasita que nos é tão caro e nos perguntamos o que seria da nossa vida sem ele – não ousamos nem pensar! Eis uma lógica do tormento bastante curiosa.
            E, no entanto, uma vez que iniciamos o nosso trabalho de introspecção, descobrimos que a transformação não é nem de longe tão dolorosa quanto havíamos imaginado. Ao contrário, tão logo decidimos empreender metamorfose interior, mesmo que tenhamos que passar por algumas dificuldades, percebemos nesse trabalho uma alegria que faz de cada passo uma nova satisfação. Temos o sentimento de adquirir uma liberdade e uma força interior cada vez maiores, que se traduzem em uma diminuição das nossas angústias, dos nossos medos e das nossas ansiedades. O sentimento de insegurança dá lugar a uma confiança repleta de alegria de viver, e o egoísmo crônico, a um altruísmo amistoso.
            Um dos meus professores, o falecido Sandrak Rimpoche, viveu mais de trinta anos na fronteira montanhosa entre o Nepal e o Tibete. Ele me contou que, quando iniciou seus retiros, ainda adolescente, passou por anos muito difíceis. As suas emoções eram tão poderosas, principalmente os desejos, que ele chegou a pensar que ficaria louco (quando me falou sobre isso, tinha um grande sorriso na face). Mas depois, pouco a pouco, foi se familiarizando com as várias maneiras de tratar as emoções e conseguiu uma perfeita liberdade interior. Desde então, cada momento da vida foi, para ele, uma experiência de pura alegria. E isso era visível! Ele foi uma das pessoas mais simples, alegres, serenas e reconfortantes que conheci. Eu tinha a impressão de que nada poderia afetá-lo; era como se as dificuldades exteriores passassem por ele como gotas d’água deslizando sobre uma pétala de rosa. Quando falava, seus olhos ficavam brilhando de alegria, deliciados, e ele parecia tão leve, tão vivaz que eu pensava que ele iria sair voando como um passarinho.

 Trecho do livro ”Felicidade – A pratica do Bem Estar”

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