“As pessoas usam seus sentidos para procurar a resposta fora de si
mesmas, sem notar que ela se encontra dentro delas o tempo todo”. Huang Po
Distraída, ela caminha pelo
bosque. Os pensamentos dispersos mal permitem perceber toda a beleza que a
cerca... a riqueza de cores, sons, e
espécies que vivem neste habitat perfeito para tanta vida.
Parece impossível que morando tão
próximo, passou tanto tempo sem conhecer este lugar. Um cantinho
tranqüilo onde pode ler um livro e colocar os pensamentos em ordem,
ficar em paz, longe do tumulto lá de baixo...., o lugar
ideal para renovar as energias e relaxar a mente.
Lembra-se do sonho que tivera de madrugada. Acordou impressionada. Que significaria? Parecia estar num grande salão. Viu uma cena
estranha...., muitas pessoas estavam sentadas diante de uma mesa enorme. Devia ser
noite porque estava tudo muito escuro, nebuloso, e mal podia ver a
fisionomia das pessoas. Mas com certeza
estavam brigando. Discutiam entre si e pareciam não estar dispostas a aceitar a
opinião das outras. Todas insistiam em
defender as suas razões. Mas, o mais estranho é que havia ali pessoas de
diferentes idades e tipos.
Uma criança e uma adolescente
gritavam reivindicando o direito a ser
ouvidas e tratadas com igualdade. Parece que estavam sendo desrespeitadas nos
seus direitos. Uma mulher mais velha de aspecto mais fechado, parecendo muito
rígida e infeliz, batia na mesa, mandando
todos se calar e exigia que esperassem os mais velhos terminar de falar.
Uma jovem chorava sem coragem de expressar o que a incomodava. Parecia
amedrontada e extremamente insegura. Havia uma figura que mais parecia um soldado no quartel, sempre
disposto a cumprir ordens e fazer continência. A que parecia ser uma freira repetia constantemente: não, não
posso, isso é pecado. Ela deixou uma desagradável impressão em Clara. Lembrava
uma professora da sua infância que vivia
castrando todos os alunos e impedindo-os de fazer qualquer atividade que lhes
desse prazer.
Clara estava atônita, olhando a
cena sem saber o que fazer. Tentou
intervir e pedir calma mas ninguém a ouviu. Era tamanho o tumulto que
não conseguia entender o que cada um desejava realmente. Mas todos ali queriam
alguma coisa, e brigavam por isso. Menos
a jovem. Essa continuava calada, parecendo muito assustada. A figura mais autoritária do grupo a
intimidava apenas com o olhar. Enquanto discutiam e se agrediam
mutuamente, a penumbra ia aumentando
mais, até o momento em que Clara só ouvia as vozes e a criança chorando, não
via mais as figuras. Agora percebia melhor o tom estridente de
algumas vozes e a intenção de dominar aquela espécie de reunião.
O que essas pessoas queriam ali,
brigando desse jeito? Todas pareciam querer mandar, defender o seu território.
Uma cena triste.... Estava claro que
dificilmente chegariam a um
acordo. Aquele conflito continuaria sabe-se
lá até quando.
Quando acordou, sua cabeça
doía e sentia uma sensação desagradável
de quem se mete numa briga que não é sua, como se tivesse participado de uma
disputa pelo poder.
- Acho que estou estressada. Felizmente descobri este lugar, um pequeno paraíso
Já há algum tempo vem se sentindo cansada e com alguns
sinais de princípio de depressão. Até a secretária chamou sua
atenção. Seu cansaço já estava ficando
aparente, isso não era bom.
Lembra das palavras da secretária:
- Doutora! Você está cansada, logo de manhã
já chega ao consultório com essa
aparência abatida. Está trabalhando demais! Desse jeito vai ficar doente. Aí sim, vai ficar
sério. Porque não arranja um tempinho para fazer uma ginástica? Ou fazer uma
caminhada. Olha, precisa ir a um cineminha, um teatro.... fazer alguma coisa
diferente.
Era o que faltava para tomar consciência do
que estava fazendo com a sua saúde. O que pretendia trabalhando desse jeito?
Talvez quisesse esquecer sua solidão.
Tantas pessoas se escondem no trabalho para disfarçar as frustrações, a
solidão...mergulham feito loucas em projetos e mais projetos sem se permitir
férias, prazeres ou uma vida satisfatória.
- Não,
não vou entrar num esquema desses. Tudo bem que a minha vida está bem
sem graça, uma droga. Mas eu sou a única
responsável por isso. Não estou
priorizando o meu bem estar, o prazer...Não tenho tempo para sair, para
caminhar, para nada. Não, de maneira
alguma! Não quero isto para mim. Como posso ajudar meus pacientes, assim, desse
jeito?
Mudou os hábitos e agora essas caminhadas já
fazem parte da sua rotina. Os domingos
são sagrados, nada de trabalho e estudo. Tenta
esquecer os problemas, os casos,
os livros que esperam para serem lidos..., deixa tudo e vem para cá em busca de sossego.
Conheceu este lugar quando um colega da clínica a convidou para
assistir uma apresentação de Tai Chi, uma arte milenar chinesa que costuma
ser realizada nessa floresta. Ficou impressionada com a leveza dos
movimentos e com a harmonia e o equilíbrio demonstrados pelos participantes. E
aprendeu o caminho.
Dizem que não existe acaso, que
nada acontece por simples conscidência, mas seja como for, este foi um marco na
vida de Clara. Depois desse dia, ela
voltou aqui inúmeras vezes, fez deste passeio o seu preferido, e vem, sempre
que pode, para renovar as energias aqui,
onde o homem e a natureza estão em perfeita harmonia, em total integração. Aqui
sente-se em comunhão com tudo que a
cerca, como se fizesse parte de algo maior... Gosta de observar algumas pessoas sentadas, em posição
de lótus, fazendo meditação, praticando Ioga.... Parece que assimila a paz que
emana dessas pessoas. Admira a
capacidade que têm de relaxar assim,
totalmente... sair da realidade e ir para outros níveis de consciência.
Gosta de silêncio, ficar em lugares que
permitam estar consigo mesma. Desde criança é assim, introspectiva,
temperamento calado e observador. Diziam que vivia no mundo da lua. Na
verdade, gostava de ficar quietinha para
conversar consigo mesma, ouvir as vozes falarem dentro dela. Ela mesma
respondia às perguntas que fazia, precisava de silêncio para ouvir...
Ainda agora, muitas vezes sente
necessidade de falar sozinha. E aqui, neste bosque encontrou
o sossego que precisa para se encontrar consigo mesma.. É como se este
pedaço de chão, estas árvores e tudo aqui lhe pertencessem. Seu pequeno
mundo de paz em meio a tanta violência
que acontece lá fora, assustando as pessoas, as famílias e a sociedade. Aqui
sente-se segura, não corre qualquer risco,
pode relaxar sem medo.
Este é o lado mais calmo do
bosque. Poucas pessoas vêm para cá, a maioria prefere o outro lado, onde há
bancos para sentar, lugar para fazer refeições e alguns brinquedos onde as
crianças se distraem.
Sobe calmamente, percorrendo o mesmo caminho, ou melhor, a mesma trilha
entre árvores de diferentes espécies e tonalidades. Vai em busca do seu lugar,
o cantinho que descobriu há algum tempo
atrás bem no meio da floresta, uma clareira com
uma imensa araucária, uma espécie de pinheiro que sobressai entre
tantos outros. Este passou a ser o seu
refúgio. Um tronco caído serve-lhe de banco. Sente como se alguém tivesse vindo
antes prepará-lo para ela.
Enquanto senta, pensa que este
tronco também já foi uma árvore que
cresceu e um dia morreu, mas
ainda agora continua sendo importante. Não oferece mais sombra, mas tornou-se um lugar onde podem descansar os
caminhantes.... esta árvore tão antiga é capaz de guardar em si a memória do
tempo, pensa enquanto olha ao redor e percebe trilhas abertas por outros que
vieram antes dela.
Faz alguns exercícios respiratórios e logo uma sensação agradável vai
percorrendo o seu corpo e se irradiando até a mente. Sente-se relaxada enquanto respira o ar puro desse
lugar meio escondido e por isso mesmo, ainda preservado da ação predatória do
homem. Lamenta que tantas pessoas ainda
não aprenderam a olhar ao redor de si mesmos, percebem apenas o seu próprio mundo e perdem de vista
a Vida que se manifesta na natureza. Lamenta pelos “adormecidos”.
Ouve o alegre cantar dos
passarinhos que, em bandos, voam de um árvore para outra, alegres, felizes
simplesmente, por poder voar. Por viver em contato com outros seres, viver em
liberdade. São muitos e de várias espécies, cores e tamanhos...voam livres.
Livres como o pensamento de Clara que agora também voa.... Pensa nas pessoas
que se esquecem que a liberdade
é o anseio não só dos homens, mas de todos os seres vivos. Pessoas
que prendem diversas espécies de aves em gaiolas, que mesmo que fossem de ouro
continuariam sendo apenas uma prisão. Isto porque “gostam de passarinhos e
querem acordar ouvindo o seu canto”. O
egoísmo do homem torna-o cego.
Sorri de si mesma, dos seus pensamentos.
É bom saber que há muitos outros que respeitam
a natureza e outros ainda que vão além
desse respeito, chegando mesmo a lutar por ela.
São os defensores da ecologia,
aqueles que fazem movimentos em defesa das baleias, dos golfinhos e dos
animais e das florestas em geral Alguns realizam um trabalho fantástico a
serviço da vida. Alertando a humanidade contra o perigo das queimadas nas
florestas, a poluição das águas e o extermínio dos animais já em processo de
extinção”.
Um pássaro pousou ao seu
lado, trazendo-a de volta
à realidade.
Observa com mais atenção ao
redor, olha para as árvores, os arbustos, o mato que a cerca.
- Será que por aqui existem
mesmo os tais seres da natureza que chamam de elementais? Dizem que vivem nas florestas e brincam voando de cá
para lá... E se estiverem aqui, podem me ouvir?
Deve ser fantasia ou fruto da imaginação de escritores e alguns
místicos... Mas, e se for verdade? Não,
as folhas estão paradas, não há ninguém por aqui.
Um bonito sorriso volta aos seus lábios. Ri dos seus próprios pensamentos. Se algum tempo atrás lhe
dissessem que teria esses pensamentos acharia uma piada. Quando podia supor que
um dia pensaria em fadas, elfos e outros seres do reino elemental como uma
realidade possível?
- Isso é culpa de Lúcia, com essas conversas de fadas e gnomos...coisas
para distrair as crianças.
- E por que não pode ser verdade? ( Contesta uma vozinha dentro dela)
.... É uma grande pretensão dos homens,
pensar que o Planeta pertence apenas a eles.
Olha em volta, parecendo
desconfiada.
- O que está acontecendo comigo?
Estou me desconhecendo.
De uns tempos para cá, começou a
pensar no possibilidade de Lúcia estar certa. Tantas pessoas acreditam em seres
da natureza, em reencarnação, em energia.... Pessoas sérias, estudiosas do
assunto. E afinal, ela não pode negar que tem isso a atrai. Gosta de ouvir falar
a respeito e até de ler aqueles jornais que tratam de assuntos esotéricos.
A verdade é que algumas coisas estranhas vêm ocorrendo com ela. Semana
passada, por exemplo, no consultório, quando o paciente entrou ela ouviu uma
voz que parecia vir de dentro da cabeça dela dizendo claramente: essa pessoa
sofre de hepatite. Levou um susto, mas
logo viu que a voz não estava enganada. Era hepatite. Ontem mesmo..... precisava pesquisar um caso de difícil diagnóstico e,
quando chegou próximo da estante, um livro caiu lá de cima, aberto exatamente na página que falava sobre
a doença.
Não, isso não podia ser coincidência.
Lembrou-se de uma frase que leu em algum
lugar: “Há muito mais coisas entre o Céu e a Terra do que o Homem pode
imaginar” Essa frase fazia sentido.
Sentia-se extremamente sensível
e emotiva. Reagindo de maneira mais
tranqüila aos diferentes acontecimentos do dia a dia. Via claramente as
mudanças que vinham ocorrendo na sua personalidade, com seus valores e
até mesmo com as suas crenças.
Que estava mudada, lá isso estava! Mais exatamente depois da viagem ao Japão. Não sabe a razão, mas voltou
de lá, diferente.
Lúcia, a amiga mais íntima, diz
que é a energia que flui no Oriente, que a Filosofia Budista provavelmente a
influenciou. Pode ser!
Seja como for, o tempo que andou
por lá e as pessoas que conheceu mexeram
com ela. Está até mais atenta quando o assunto é
ligado a coisas místicas, e à Espiritualidade. Lendo reportagens e
assistindo a entrevistas que falam de assuntos relacionados ao mundo invisível,
seres elementais, vida após a vida... De
algum modo, a maneira dela encarar essas questões do imaginário e do
desconhecido está diferente.
Está diferente, mais amadurecida, paciente .... até mais flexível.
Olha em volta e sorri. Os
passarinhos estão cantando mais
bonito, o som do vento e das folhas se
balançando ao ar está mais agradável aos
seus ouvidos A água do riacho que corre
ali ao lado...tudo é diferente desde que passou a dar mais atenção à vida
presente na natureza. Percebe num arbusto, uma folha se balançando, entre
outras que estão absolutamente paradas, como se estivesse fazendo-lhe um sinal
e sente um arrepio percorrer-lhe a
espinha.
- Quanto tempo perdi, voltada
apenas para as coisas do dia a dia. Quem me garante que não esteja
mesmo cercada de seres
invisíveis. Onde há fumaça, há fogo... Se tantas pessoas garantem a existência de outras formas de vida, quem sou eu para
negar?
Lembra das histórias de fadas e
bruxas, dos anõezinhos ...Logo está viajando pelo mundo das idéias, sensações e
lembranças. Os contos que preencheram sua infância..... Como num sonho recorda a criança e a adolescente que foi.
Quantos sonhos sonhados... Imagens e sons perdidos no tempo vão se tornando
presentes.
Pensa no tempo de criança. Não tinha com quem brincar. Sua vida com a
avó, numa grande casa do interior. Brincava sozinha, falando com as bonecas e
com amigos que moravam apenas na sua mente, na fantasia. E Sonhava. Sonhava
muito. Dormindo ou acordada ela viajava
no mundo de sonhos , ricos de
experiências e grandes descobertas.
MCCA
Continua...
Continua...
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