terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Atravessando o Portal do Tempo - I

I - INICIANDO A JORNADA

        “As pessoas usam seus sentidos para procurar a resposta fora de si mesmas, sem notar que ela se encontra dentro delas o tempo todo”.   Huang Po

Distraída, ela caminha pelo bosque.   Os pensamentos dispersos  mal permitem perceber toda a beleza que a cerca... a riqueza de cores, sons,  e espécies que vivem neste habitat perfeito para tanta vida.
Parece impossível que morando tão  próximo, passou tanto tempo sem conhecer este lugar. Um cantinho tranqüilo onde  pode ler um  livro e colocar os pensamentos em ordem, ficar em   paz,  longe do tumulto lá de baixo...., o lugar ideal para  renovar as energias e  relaxar a mente.

Lembra-se do sonho que tivera de madrugada.  Acordou impressionada. Que significaria?  Parecia estar num grande salão. Viu uma cena estranha...., muitas pessoas estavam sentadas diante de uma mesa enorme.  Devia ser  noite porque estava tudo muito escuro, nebuloso, e mal podia ver a fisionomia das  pessoas. Mas com certeza estavam brigando. Discutiam entre si e pareciam não estar dispostas a aceitar a opinião das outras. Todas insistiam em  defender as suas razões. Mas, o mais estranho é que havia ali pessoas de diferentes idades e tipos.
Uma  criança e uma adolescente gritavam reivindicando o  direito a ser ouvidas e tratadas com igualdade. Parece que estavam sendo desrespeitadas nos seus direitos. Uma mulher mais velha de aspecto mais fechado, parecendo muito rígida e infeliz, batia na mesa, mandando  todos se  calar e exigia que  esperassem os mais velhos terminar de falar. Uma jovem chorava sem coragem de expressar o que a incomodava. Parecia amedrontada e extremamente insegura. Havia uma figura que mais  parecia um soldado no quartel, sempre disposto a cumprir ordens e fazer continência. A que parecia ser uma  freira repetia constantemente: não, não posso, isso é pecado. Ela deixou uma desagradável impressão em Clara. Lembrava uma  professora da sua infância que vivia castrando todos os alunos e impedindo-os de fazer qualquer atividade que lhes desse prazer.

Clara estava atônita, olhando  a cena sem saber o que fazer. Tentou  intervir e pedir calma mas ninguém a ouviu. Era tamanho o tumulto que não conseguia entender o que cada um desejava realmente. Mas todos ali queriam alguma coisa, e  brigavam por isso. Menos a jovem. Essa continuava calada, parecendo muito assustada.  A figura mais autoritária do grupo a intimidava apenas com o olhar. Enquanto discutiam e se agrediam mutuamente,  a penumbra ia aumentando mais, até o momento em que Clara só ouvia as vozes e a criança chorando, não via mais  as figuras.  Agora percebia melhor o tom estridente de algumas vozes e a intenção de dominar aquela espécie de reunião.
O que essas pessoas  queriam ali, brigando desse jeito? Todas pareciam querer mandar, defender o seu território. Uma cena triste.... Estava claro que  dificilmente chegariam a  um acordo. Aquele conflito continuaria sabe-se  lá até quando. 

Quando  acordou, sua cabeça doía  e sentia uma sensação desagradável de quem se mete numa briga que não é sua, como se tivesse participado de uma disputa pelo poder.
- Acho que estou estressada. Felizmente descobri este  lugar, um pequeno paraíso
Já há algum tempo vem se sentindo cansada  e com alguns  sinais de princípio de depressão. Até a secretária chamou sua atenção.  Seu cansaço já estava ficando aparente, isso não era bom.
Lembra das palavras da secretária:
- Doutora! Você está cansada, logo de manhã já  chega ao consultório com essa aparência abatida. Está trabalhando demais! Desse  jeito vai ficar doente. Aí sim, vai ficar sério. Porque não arranja um tempinho para fazer uma ginástica? Ou fazer uma caminhada. Olha, precisa ir a um cineminha, um teatro.... fazer alguma coisa diferente.

Era o que faltava para tomar consciência do que estava fazendo com a sua saúde. O que pretendia trabalhando desse jeito? Talvez quisesse esquecer sua solidão.  Tantas pessoas se escondem no trabalho para disfarçar as frustrações, a solidão...mergulham feito loucas em projetos e mais projetos sem se permitir férias, prazeres ou uma vida satisfatória.

- Não,  não vou entrar num esquema desses. Tudo bem que a minha vida está bem sem graça, uma droga.  Mas eu sou a única responsável  por isso. Não estou priorizando o meu bem estar, o prazer...Não tenho tempo para sair, para caminhar, para nada.   Não, de maneira alguma! Não quero isto para mim. Como posso ajudar meus pacientes, assim, desse jeito? 

Mudou os hábitos e agora essas caminhadas já fazem parte da sua  rotina. Os domingos são sagrados, nada de trabalho e estudo. Tenta  esquecer  os problemas, os casos, os livros que esperam para serem lidos..., deixa tudo  e vem para cá em busca de sossego.
Conheceu este lugar quando um colega da clínica a convidou para assistir uma apresentação de Tai Chi, uma arte milenar chinesa que costuma ser  realizada nessa floresta.  Ficou impressionada com a leveza dos movimentos e com a harmonia e o equilíbrio demonstrados pelos participantes. E aprendeu o caminho.
Dizem que  não existe acaso, que nada acontece por simples conscidência, mas seja como for, este foi um marco na vida de Clara. Depois  desse dia, ela voltou aqui inúmeras vezes, fez deste passeio o seu preferido, e vem, sempre que pode, para  renovar as energias aqui, onde o homem e a natureza estão em perfeita harmonia, em total integração. Aqui sente-se em comunhão com tudo que  a cerca, como se fizesse parte de algo maior... Gosta de  observar algumas pessoas sentadas, em posição de lótus, fazendo meditação, praticando Ioga.... Parece que assimila a paz que emana dessas pessoas. Admira  a capacidade que têm de relaxar assim,  totalmente... sair da realidade e ir para outros níveis  de consciência.
Gosta de silêncio, ficar em lugares que  permitam estar consigo mesma. Desde criança é assim, introspectiva, temperamento calado e observador. Diziam que vivia no mundo da lua. Na verdade,  gostava de ficar quietinha para conversar consigo mesma, ouvir as vozes falarem dentro dela. Ela mesma respondia às perguntas que fazia, precisava de silêncio para ouvir...
 Ainda agora, muitas vezes sente necessidade de falar sozinha. E aqui, neste bosque    encontrou  o sossego que precisa para se encontrar consigo mesma.. É como se este pedaço de chão, estas árvores e tudo aqui lhe pertencessem. Seu pequeno mundo  de paz em meio a tanta violência que acontece lá fora, assustando as pessoas, as famílias e a sociedade. Aqui sente-se segura, não corre qualquer risco,  pode relaxar sem  medo.
Este  é o lado mais calmo do bosque. Poucas pessoas vêm para cá, a maioria prefere o outro lado, onde há bancos para sentar, lugar para fazer refeições e alguns brinquedos onde as crianças se distraem.
Sobe calmamente, percorrendo o mesmo caminho, ou melhor, a mesma trilha entre árvores de diferentes espécies e tonalidades. Vai em busca do seu lugar, o cantinho  que descobriu há algum tempo atrás bem no meio da floresta, uma clareira com  uma imensa  araucária,  uma espécie de pinheiro que sobressai entre tantos outros.  Este passou a ser o seu refúgio. Um tronco caído serve-lhe de banco. Sente como se alguém tivesse vindo antes prepará-lo para ela.
Enquanto senta,  pensa que este tronco também já foi uma árvore que  cresceu e um dia  morreu, mas ainda agora continua sendo importante. Não oferece mais sombra,  mas tornou-se um lugar onde podem descansar os caminhantes.... esta árvore tão antiga é capaz de guardar em si a memória do tempo, pensa enquanto olha ao redor e percebe trilhas abertas por outros que vieram antes dela.
Faz alguns exercícios respiratórios e logo uma sensação agradável vai percorrendo o seu corpo e se irradiando até a mente. Sente-se  relaxada enquanto respira o ar puro desse lugar meio escondido e por isso mesmo, ainda preservado da ação predatória do homem.  Lamenta que tantas pessoas ainda não aprenderam a olhar ao redor de si mesmos, percebem  apenas o seu próprio mundo e perdem de vista a Vida que se manifesta na natureza. Lamenta pelos “adormecidos”.
Ouve o  alegre cantar dos passarinhos que, em bandos, voam de um árvore para outra, alegres, felizes simplesmente, por poder voar. Por viver em contato com outros seres, viver em liberdade. São muitos e de várias espécies, cores e tamanhos...voam livres. Livres como o pensamento de Clara que agora também voa.... Pensa nas pessoas que  se esquecem que  a liberdade  é o anseio não só dos homens, mas de todos os seres vivos. Pessoas que  prendem  diversas espécies de  aves em gaiolas, que mesmo que fossem de ouro continuariam sendo apenas uma prisão. Isto porque “gostam de passarinhos e querem acordar ouvindo o seu canto”.  O egoísmo do homem  torna-o cego.

 Sorri de si mesma, dos  seus pensamentos.
 É  bom saber que há muitos outros que respeitam a natureza e outros ainda que  vão além desse respeito, chegando mesmo a lutar por ela.  São os defensores da ecologia,  aqueles que fazem movimentos em defesa das baleias, dos golfinhos e dos animais e das florestas em geral Alguns realizam um trabalho fantástico a serviço da vida. Alertando a humanidade contra o perigo das queimadas nas florestas, a poluição das águas e o extermínio dos animais já em processo de extinção”.
Um pássaro pousou ao seu  lado,  trazendo-a  de volta  à realidade.
Observa com  mais atenção ao redor, olha para as árvores, os arbustos, o mato que a cerca.
-  Será que por aqui existem mesmo os tais seres da natureza que chamam de elementais? Dizem que   vivem nas florestas e brincam voando de cá para lá... E se estiverem aqui, podem me ouvir?  Deve ser fantasia ou fruto da imaginação de escritores e alguns místicos... Mas, e se for verdade?  Não, as folhas estão paradas, não há ninguém por aqui.
Um bonito sorriso volta aos seus lábios. Ri dos seus próprios  pensamentos. Se algum tempo atrás lhe dissessem que teria esses pensamentos acharia uma piada. Quando podia supor que um dia pensaria em fadas, elfos e outros seres do reino elemental como uma realidade possível?
- Isso é culpa de Lúcia, com essas conversas de fadas e gnomos...coisas para distrair as crianças. 
- E por que não pode ser verdade? ( Contesta uma vozinha dentro dela) .... É uma grande  pretensão dos homens, pensar  que o Planeta  pertence apenas a eles.
Olha em volta, parecendo  desconfiada.
-  O que está acontecendo comigo? Estou me desconhecendo.

De uns  tempos para cá, começou a pensar no possibilidade de Lúcia estar certa. Tantas pessoas acreditam em seres da natureza, em reencarnação, em energia.... Pessoas sérias, estudiosas do assunto. E afinal, ela não pode negar que tem isso a atrai. Gosta de ouvir falar a respeito e até de ler aqueles jornais que tratam de assuntos esotéricos.
A verdade é que algumas coisas estranhas vêm ocorrendo com ela. Semana passada, por exemplo, no consultório, quando o paciente entrou ela ouviu uma voz que parecia vir de dentro da cabeça dela dizendo claramente: essa pessoa sofre de hepatite.  Levou um susto, mas logo viu que a voz não estava enganada. Era hepatite.  Ontem mesmo..... precisava  pesquisar um caso de difícil diagnóstico e, quando chegou próximo da estante, um livro caiu lá de cima,  aberto exatamente na página que falava sobre a doença.
Não, isso não podia ser coincidência.  Lembrou-se de uma frase que leu em algum  lugar: “Há muito mais coisas entre o Céu e a Terra do que o Homem pode imaginar” Essa frase fazia sentido.
Sentia-se extremamente  sensível e  emotiva. Reagindo de maneira mais tranqüila aos diferentes acontecimentos do dia a dia. Via  claramente as  mudanças que vinham ocorrendo na sua personalidade, com seus valores e até  mesmo com as suas crenças.
Que estava mudada, lá isso estava! Mais exatamente depois da  viagem ao Japão. Não sabe a razão, mas voltou de lá, diferente.
 Lúcia, a amiga mais íntima, diz que é a energia que flui no Oriente, que a Filosofia Budista provavelmente a influenciou. Pode ser!
Seja como for,  o tempo que andou por lá e  as pessoas que conheceu mexeram com ela.  Está até mais  atenta quando o  assunto é  ligado a coisas místicas, e à Espiritualidade. Lendo reportagens e assistindo a entrevistas que falam de assuntos relacionados ao mundo invisível, seres elementais, vida após a vida...  De algum modo, a maneira dela encarar essas questões do imaginário e do desconhecido  está  diferente. 
Está diferente, mais amadurecida, paciente .... até mais flexível.

Olha em volta e sorri. Os  passarinhos estão cantando  mais bonito, o som  do vento e das folhas se balançando ao ar  está mais agradável aos seus ouvidos  A água do riacho que corre ali ao lado...tudo é diferente desde que passou a dar mais atenção à vida presente na natureza. Percebe num arbusto, uma folha se balançando, entre outras que estão absolutamente paradas, como se estivesse fazendo-lhe um sinal e sente um arrepio percorrer-lhe  a espinha.
- Quanto tempo perdi,  voltada apenas para as coisas do dia a dia. Quem me garante que não  esteja  mesmo  cercada de seres invisíveis. Onde há fumaça, há fogo... Se tantas pessoas garantem a existência  de outras formas de vida, quem sou eu para negar?

Lembra das histórias  de fadas e bruxas, dos anõezinhos ...Logo está viajando pelo mundo das idéias, sensações e lembranças. Os contos que preencheram sua infância..... Como num sonho  recorda a criança e a adolescente que foi. Quantos sonhos sonhados... Imagens e sons perdidos no tempo vão se tornando presentes. 
Pensa no tempo de criança. Não tinha com quem brincar. Sua vida com a avó, numa grande casa do interior. Brincava sozinha, falando com as bonecas e com amigos que moravam apenas na sua mente, na fantasia. E Sonhava. Sonhava muito. Dormindo ou  acordada ela viajava no mundo de   sonhos , ricos de experiências e grandes descobertas.

MCCA

Continua...















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