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Sem o amor, estaríamos perdidos e, sem a esperança das existências sucessivas,
a vida seria um malogro. Todos somos doentes e carecemos de complacência. Não
importa o tamanho do crime cometido, o seu autor se redimirá e, um dia, chegará
a Francisco de Assis ou a Teresa d'ávila.
Quando a noite caiu, deixei o quarto
em que Torquemada descansava, preparando-se para novos embates no corpo, no
anseio de ser uma criatura comum e saudável. Pensei nos anônimos da terra,
naqueles personagens que sempre me interceptavam os passos, quando, raramente,
caminhava pelas ruas de Uberaba, e me estendiam as mãos solicitando uma moeda;
naqueles que iam cuidar do jardim da minha casa, lavar o meu carro, desentupir
o esgoto; naqueles que pediam pouso no sanatório, um prato de comida; naqueles
que via dormindo ao relento, com o chão forrado de jornais.
Que destino
estariam eles cumprindo no mundo?
Que espíritos se esconderiam em seus corpos?
Certamente, quase todos eles estariam tentando algo esquecer. Bendita a amnésia
que nos acomete temporariamente na vida material e nos enseja a bênção da renovação!
Um pouco mais de três meses se passaram, nos quais me desdobrei ao lado
de Tomás, na tentativa de auxiliá-lo. Apesar de tudo, as melhoras obtidas foram
diminutas. Ensimesmado, ele quase não se manifestava, embora, à minha presença
no quarto, eu registrasse as suas vibrações de simpatia em seu crescente apego
a mim.
De fato, de combativo espírita que fora e declarado adversário da
igreja, eu me transformara em guardião de um ex-inquisidor, um dos espíritos
mais terríveis de todos os tempos.
Minha estreita convivência com Torquemada,
ao longo daquele tempo, muito me havia ensinado; a lei divina não tem pressa e
espera, com paciência, que o espírito se redima; não importam as circunstâncias
da queda e o significado social de quem haja cometido um deslize, nem o seu
nome, nem sua época: não existem favorecimentos ilícitos; para o criador, todas
as criaturas são especiais e particularmente amadas.
Deus nos ama tanto, que
não nos sonega a oportunidade da corrigenda; todo erro cometido, praticamente,
se faz acompanhar da necessidade imediata de repará-lo.
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trecho de "Do outro lado do espelho", livro de Carlos Bacelli e Inácio ferreira
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