domingo, 20 de janeiro de 2013

trecho de "Do outro lado do espelho"

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Sem o amor, estaríamos perdidos e, sem a esperança das existências sucessivas, a vida seria um malogro. Todos somos doentes e carecemos de complacência. Não importa o tamanho do crime cometido, o seu autor se redimirá e, um dia, chegará a Francisco de Assis ou a Teresa d'ávila. 
Quando a noite caiu, deixei o quarto em que Torquemada descansava, preparando-se para novos embates no corpo, no anseio de ser uma criatura comum e saudável. Pensei nos anônimos da terra, naqueles personagens que sempre me interceptavam os passos, quando, raramente, caminhava pelas ruas de Uberaba, e me estendiam as mãos solicitando uma moeda; naqueles que iam cuidar do jardim da minha casa, lavar o meu carro, desentupir o esgoto; naqueles que pediam pouso no sanatório, um prato de comida; naqueles que via dormindo ao relento, com o chão forrado de jornais. 
Que destino estariam eles cumprindo no mundo? 
Que espíritos se esconderiam em seus corpos? 
Certamente, quase todos eles estariam tentando algo esquecer. Bendita a amnésia que nos acomete temporariamente na vida material e nos enseja a bênção da renovação! 

Um pouco mais de três meses se passaram, nos quais me desdobrei ao lado de Tomás, na tentativa de auxiliá-lo. Apesar de tudo, as melhoras obtidas foram diminutas. Ensimesmado, ele quase não se manifestava, embora, à minha presença no quarto, eu registrasse as suas vibrações de simpatia em seu crescente apego a mim. 
De fato, de combativo espírita que fora e declarado adversário da igreja, eu me transformara em guardião de um ex-inquisidor, um dos espíritos mais terríveis de todos os tempos. 
Minha estreita convivência com Torquemada, ao longo daquele tempo, muito me havia ensinado; a lei divina não tem pressa e espera, com paciência, que o espírito se redima; não importam as circunstâncias da queda e o significado social de quem haja cometido um deslize, nem o seu nome, nem sua época: não existem favorecimentos ilícitos; para o criador, todas as criaturas são especiais e particularmente amadas. 
Deus nos ama tanto, que não nos sonega a oportunidade da corrigenda; todo erro cometido, praticamente, se faz acompanhar da necessidade imediata de repará-lo.
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trecho de "Do outro lado do espelho", livro de Carlos Bacelli e Inácio ferreira

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