quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Vidas passadas, por Márcia Lobo

Sempre  achei a tal terapia de vidas passadas um negócio muito bem bolado. Calminha, não estou dizendo que acredito já ter sido uma princesa egípcia, ou uma sacerdotisa grega, ou uma operária na Inglaterra vitoriana. Não é nada disso. O legal da coisa é poder literalmente tirar o corpo fora e jogar a responsabilidade por uma neura de agora nas costas daquela outra pessoa que a gente foi há milhões de anos. Um bocado conveniente, né não? Quando a novidade chegou aqui, lá pelo final da década de 80, se não me engano (isto, sim, parece que foi em outra vida), entrevistei uma especialista e fiz uma sessão de regressão para saber como funcionava. Claro que não ia falar de intimidades; então, resolvi investigar um problema que me chateava demais: por que, diabos, não conseguia pegar uma faca sem acabar me cortando?

Foi interessante. A idéia era deitar de olhos fechados, completamente relaxada, sem pensar em nada, e deixar as ”lembranças” voltarem trazendo a resposta desejada. Não demorou para eu me ver como um feroz guerreiro turco, lutando no que sabia ser a tomada de Constantinopla, em 29 de maio de 1453 – não por acaso, dia do meu aniversário (só o 29 de maio, claro!). Segurando com as duas mãos uma enorme cimitarra, abria caminho deixando para trás corpos de inimigos até chegar no topo da muralha da cidade. Foi aí que dei um drible a mais: com um grito de vitória, girei no ar a pesadíssima lâmina, mas perdi o equilíbrio e despenquei lá embaixo. Quer dizer, minha gloriosa encarnação no século XV terminou por causa de um descuido provocado por excesso de confiança. 



Minha mãe, meu marido, meu filho, até meu cachorro Biscoito poderiam ter me alertado para o fato de que vivia me cortando por ser estabanada. Na verdade, com exceção do Biscoito, todos já tinham dito isto, sem o menor resultado. Bastou, porém, meu outro “eu”, aquele que lutou sob as ordens do sultão Maomé II, “mostrar” como havia se ferrado bestamente, para o “eu” atual nunca mais ter problemas com facas. Desde então, fiquei atenta não só para o que poderia me cortar como para o que poderia me derrubar. Quando percebia que estava “me achando”, baixava a bola e tratava de avaliar melhor a situação. Sabia por experiência própria em mais de uma vida que excesso de confiança é um perigo.

Resolvi contar essa história antiga porque acabo de descobrir que estão tentando puxar o meu tapete. Tão feroz quanto as tropas turcas que caíram de pau em Constantinopla, tal ameaça vem da Universidade da Califórnia, em Bekerley (EUA); o problema é que agora estou no lado perdedor. Um impiedoso professor chamado Cameron Anderson comandou por lá uma pesquisa que considerei um ataque pessoal, pois chegou à seguinte conclusão: gente que se acha melhor do que os outros costuma se dar bem em tudo, mesmo quando não é. Resumindo, a falta de desconfiômetro pode ser um grande negócio. 

O excesso de confiança baseado em muito pouco (ou em nada!) é bastante convincente pela autenticidade. A criatura ignora que não está com essa bola toda e age como se estivesse. É falante, participante, calma, cheia de idéias, não tem medo de se expor. Por isto, acaba sendo ouvida e admirada, muitas vezes até se torna influente. Estaria aí, segundo os pesquisadores do professor Anderson, a explicação para algumas injustiças que nos deixam furiosas, tipo perder o cargo dos nossos sonhos para um(a) colega incompetente ou o homem dos nossos sonhos para uma exibida sem metade do nosso charme e inteligência.

Depois desta, fiquei com a sensação de ter desperdiçado meu tempo. Uns bons 500 anos, no mínimo.

Não é revoltante?


por Márcia Lobo

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