(Do livro "Transformando a Mente", XIV Dalai Lama, trad. Waldéa Barcellos, transcrito com autorização da
Editora Martins Fontes -
O que entendemos por meditação ? Do ponto de vista budista, a meditação é uma disciplina espiritual, que nos permite algum nível de controle sobre nossos pensamentos e emoções.
Por que não conseguimos desfrutar da felicidade duradoura que buscamos ? É por que com tanta freqüência deparamos com o sofrimento e a infelicidade em seu lugar ? O budismo esclarece que, no nosso estado
mental normal, nossos pensamentos são descontrolados e rebeldes; e, como nos falta a disciplina mental para dominá-los, somos incapazes de controlá-los. Resultado, são eles que nos controlam. E os pensamentos
e emoções, por sua vez, costumam ser controlados pelos nossos impulsos negativos, em vez de o serem pelos positivos. Precisamos inverter esse ciclo, de modo que nossos pensamentos e emoções sejam liberados da
subserviência aos impulsos negativos e que nós mesmos, na nossa individualidade, ganhemos controle sobre nossa própria mente.
A idéia de produzir uma mudança tão fundamental em nós mesmos pode à primeira vista parecer impossível. No entanto, é realmente possível realizar essa mudança através de um processo de disciplina tal como a meditação. Escolhemos um objeto específico, e então treinamos a mente desenvolvendo nossa capacidade de manter a atenção concentrada no objeto. Normalmente, se tirarmos apenas um momento para refletir, veremos que nossa mente é totalmente dispersiva. Podemos estar pensando em alguma coisa e, de repente, descobrimos que fomos distraídos porque algum outro pensamento entrou na nossa cabeça.
Nossos pensamentos estão constantemente correndo atrás disso ou daquilo porque não temos a disciplina de concentrar a atenção.
Portanto, através da meditação, o que podemos alcançar é a capacidade de voltar nossa mente para qualquer objeto determinado e focalizar a atenção nele, de acordo com nossa vontade.
Ora, é evidente que poderíamos decidir enfocar um objeto negativo na nossa meditação. Se, por exemplo, alguém estiver apaixonado por uma pessoa e concentrar a mente exclusivamente nesta pessoa, insistindo em pensar nas suas qualidades desejáveis, isso terá o efeito de aumentar seu desejo sexual por aquela pessoa. Mas não é esse o objetivo da meditação. De uma perspectiva budista, a meditação deve ser praticada em relação a um objeto positivo, com o que queremos dizer um objeto ue aumente nossa capacidade de concentração. Através da familiaridade, nós nos aproximamos cada vez mais do objeto e temos uma sensação de envolvimento com ele.
Na literatura budista clássica, esse tipo de meditação é descrito como shamatha, a permanência serena, que é uma meditação de ponto único de concentração.
A shamatha em si só não basta. No budismo, associamos a meditação de ponto único à prática da meditação analítica, que é conhecida como vipasyana, discernimento penetrante. Nessa prática, aplicamos o raciocínio.
Quando reconhecemos os pontos fortes e fracos de diferentes tipos de pensamentos e emoções, bem como suas vantagens e desvantagens, conseguimos aprimorar nossos estados mentais positivos que contribuem para uma sensação de serenidade, tranqüilidade e contentamento além de reduzir a incidência daquelas atitudes e emoções
que conduzem ao sofrimento e à insatisfação. Desse modo, o raciocínio desempenha um papel de grande auxílio nesse processo.
Eu deveria salientar que os dois tipos de abordagem meditativa que descrevi, a de ponto único e a analítica, não se distinguem pelo fato de cada uma contar com um tipo diferente de objeto. A diferença entre elas reside no modo pelo qual cada uma é aplicada, não no objeto escolhido.
Para esclarecer mais este ponto, vou recorrer ao exemplo da meditação sobre a impermanência. Se aquele que medita se mantiver concentrado no pensamento de que tudo muda de um momento para outro, essa é a meditação de ponto único; ao passo que, se alguém meditar sobre a impermanência através da aplicação constante, a tudo o que encontrar, dos diversos argumentos referentes à natureza impermanente das coisas, reforçando sua convicção no fato da impermanência por meio desse processo analítico, ele estará praticando a meditação analítica sobre
a impermanência. As duas têm um objeto comum, a impermanência, mas o modo de aplicação de cada meditação é diferente.
Minha impressão é que os dois tipos de meditação são de fato praticados em quase todas as tradições religiosas mais importantes. No caso da Índia antiga, por exemplo, a prática da meditação de ponto único e a aplicação da meditação analítica são comuns a todas as tradições religiosas importantes, budistas e não-budistas. Durante uma
conversação com um amigo cristão alguns anos atrás, eu soube que no cristianismo, em especial na tradição ortodoxa grega, existe uma longa e sólida história de meditação contemplativa. E, da mesma forma, uma série de rabinos judeus falou comigo sobre certas práticas místicas no judaísmo que envolvem uma forma de meditação de ponto único.
É portanto possível integrar os dois tipos de meditação numa religião teísta. Um cristão, por exemplo, poderia dedicar-se à contemplação refletindo sobre os mistérios do mundo, sobre o poder da graça divina ou sobre várias razões que considere intensamente inspiradoras e que aumentem sua crença no divino Criador. Através de um processo dessa natureza, o indivíduo poderia chegar a uma profunda fé em Deus, e poderia então pousar sua mente nesse estado, mantendo o foco nesse ponto único. Desse modo, o praticante chega a uma meditação de ponto
único sobre Deus através de um processo analítico. Portanto, os dois aspectos da meditação estão presentes.
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